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terça-feira, 16 de maio de 2017

O Pensamento dos outros

Estava assistindo pela televisão a um seriado do gênero fantástico e algo me fez pensar: a protagonista ganhou de um alienígena um colar com um pingente que lhe dava o poder de ouvir os pensamentos das outras pessoas. Amedrontada, ela se recusou a usar tal apetrecho, pois como estavam em um bar, logo um barulho infernal se instalou em sua cabeça, e só aos poucos é que ela identificou o pensamento de uma pessoa e outra. Bem, qual não foi sua surpresa ao chegar ao ambiente de trabalho e constatar o que pensavam seus colegas, por exemplo, um pensou: “ah como esta moça é antipática”, uma colega também pensou: “coitada, ela não sabe que não se usa mais este tipo de calças”. No entanto, ao se dirigirem diretamente a ela, exclamaram: “bom dia!”, “você conseguiu terminar aquele projeto?”. A moça ficou arrasada, deprimida mesmo. É verdade que ela não era muito sociável, mas era amável com todos e nunca pensou que eles pudessem vê-la de tal e tal maneira.
Aí fiquei pensando - e se cada um de nós também ganhasse o pingente que faz ouvir pensamentos? O que será que pensam de nós? Melhor não saber. Há quem diga: não me importa o que pensam de mim. É fato, porém em tese, na teoria, não na prática. Gostamos que gostem de nós, gostamos de elogios, não gostamos de críticas. Dizem também que as críticas constroem e os elogios destroem. A crítica já destruiu muita gente e o elogio também. Cada um é que tem que fazer bom uso de um e de outro para seu próprio crescimento. Eu gosto de elogio, o elogio é um incentivo. A crítica me faz sofrer, mas por outro lado me faz pensar, refletir e crescer. Posso seguir em frente um tanto machucada, mas é fato que crescemos é no sofrimento. Não podemos ser reféns de elogios, mas não podemos ser reféns da crítica também, ou seja, não podemos deixar que as críticas nos destruam.
Somos humanos, demasiadamente humanos. No filme do seriado, os dois colegas de trabalho da garota eram boas pessoas, tinham pensamentos bons e pensamentos maus. Todos nós estamos sujeitos aos maus pensamentos, mas podemos melhorar, podemos crescer. Quando a gente tem um mau pensamento acerca de uma pessoa, se nos colocarmos no lugar dela, imediatamente reformulamos nosso pensamento, pois o que não desejamos para nós, não desejamos para os outros, bem, isso se temos um pingo de caráter, um pingo de humanidade, um pingo de caridade. Não temos responsabilidade sobre o caráter dos outros, mas sobre o nosso sim.  
Certa vez li que uma pessoa deveria ser o que é em qualquer lugar, até e principalmente em sua casa, sozinha. Quero dizer, se come com elegância em lugar público, também deveria fazê-lo em sua privacidade. Se não falamos mal de determinada pessoa para outra porque não é correto, também não deveríamos pensar mal dela. É que ocultamente achamos que estamos incólumes, que ninguém nos julgará. Santa ingenuidade, ledo engano, é preciso cuidar do caráter, ou do espírito, como cuidamos do corpo porque as coisas ocultas às vezes escapam sem que a gente perceba.
É melhor não usar o pingente, é melhor não saber o que pensam de nós. O melhor mesmo é cuidar do nosso pensamento em relação aos outros, isso sim.
Vamos melhorando ...    


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quinta-feira, 27 de abril de 2017

Abracadabra


Ontem disse umas coisas para uma amiga que eu não queria dizer, melhor dizendo, que eu não deveria dizer. Normalmente, engulo as palavras, mas quando falo, o mundo acaba. Aí é que percebo a força que as palavras têm. Quando não consigo engolir, elas vêm atropeladamente, e palavras curam tanto quanto machucam. Melhor se tivessem ficado quietas em seu mundo, e que a gente nunca tivesse a oportunidade de dizer nada porque uma vez ditas são fatais. Se ... se ... se... não tivessem sido ditas, a vida seguia do jeito que era, de manhã, de tarde, de noite, sorrisos alegres, sorrisos amargos, terrores noturnos, algumas esperanças e até sonhos. E quando eu entrego meu dia a Deus pela manhã, entrego meus pensamentos, sentimentos e palavras. Contudo sei e aceito que o “justo cai sete vezes ao dia”. Até os santos caíram muito. Não é verdade que sempre “não fazemos o bem que queremos e fazemos o mal que não queremos”?
As palavras têm vida. Adelia Prado diz que “quem entender a linguagem entende Deus”. Olha a força das palavras! Tudo em nossa vida está ligado às palavras que dão nomes às coisas e expressão aos nossos sentimentos. Então, foi triste como uma despedida! Mas a vida é assim, feita de encontros, mas de muitas rupturas, aliás, cada momento é uma ruptura com outros momentos. Dizem que o segredo da vida é aceitação serena de tudo o que vem, afinal quem foi que nos garantiu que tudo correria bem, que tudo acabaria bem? Só as mães falam isso quando percebem o terror do filho que chora ao acordar de um pesadelo. Dizem elas: tudo vai ficar bem. Mas no correr da vida, o filho vai perceber que nem sempre ou quase nunca tudo fica bem. E impotente, ele prosseguirá porque não haverá outro caminho a seguir, e se tiver sabedoria aprenderá que é melhor sofrer “bem” como tudo na vida deve ser bem feito. O que é que tem sofrer? Soframos bem, ora pois.
Voltemos às palavras. Elas são mágicas. Podem edificar, podem destruir, podem se transformar em poemas delicadíssimos, podem romper relacionamentos, podem transformar uma vida para sempre, para melhor ou para pior. Já disse isso. Podem declarar guerras entre países e fazer retornar a paz.  Estou dizendo mais do que o óbvio, nada de novo. Mas eu queria inventar uma palavra que consertasse tudo, que abrisse as portas emperradas, que curasse as dores do corpo e da alma.  Aí me lembrei do abracadabra, a palavra encantada que quando dita curava febres e inflamações. Etimologicamente, do aramaico, abracadabra significaria “eu crio enquanto eu falo”, ou ainda “faço desaparecer algo ruim com esta palavra”. Pronto. Já me sinto com uma varinha mágica dizendo abracadabra e com as mãos cheias do pó de “pirlimpimpim”. Jogo o pó e digo “abracadabra”, e desfaço o mal feito e crio o bem. Ah! como eu queria o poder do abracadabra, como seria bom! Não é bem assim. Para acreditar nisso eu teria que acionar o encantamento de menina e não é toda hora que sou capaz dessa façanha. Às vezes a realidade é real demais da conta.
Não sei, não sei. Como diria Rilke, “tenho tanto medo das palavras. Elas dizem tudo com tamanha precisão.”
Bem, existe outra palavra mágica, infalível, mas real, saindo do coração: Perdão. E depois, bem, depois a gente deixa seguir o barco, soltando um pouco as amarras, aliviando os fardos, abaixando as velas, deixando a correnteza nos levar ao seu bel prazer. Pode até ser que este barco vá dar numa ilha encantada. Quem sabe.
Depois disso, apenas um pouco de silêncio. Perdão. Tenho dito.  


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quarta-feira, 19 de abril de 2017

Louro: 100 Anos de Curtição

É sabido que os papagaios são adoráveis aves inteligentes, sociáveis, marotos, canhotos que seguram o alimento com o pé esquerdo, às vezes bocejam, manifestam ciúmes, repetem e imitam o que as pessoas falam. Tudo bem, mas igual ao Louro, nunca vai existir. Que assim o dissesse a Samaria, empregada antiquíssima de certa família no início do século XX. Ela servia a família na fazenda com uma fidelidade inigualável e amor genuíno, aliás, o mesmo amor com que criou seus próprios filhos ali mesmo, todo mundo junto debaixo do mesmo teto. Foi a Samaria que apareceu um dia com um papagainho tão pequeno que mais parecia um filhote de passarinho. Começou a chamá-lo de Louro e o nome ficou. Assim me contaram.
Pois não é que o Louro reinou por cem anos naquela família? Ele não só alegrava as crianças e os adultos como interferia nos assuntos familiares, religiosos, questões financeiras, conflitos da alcova, enfim, em tudo. O papagaio era o centro das atenções. Fazia ar de debochado, dedurava o garoto que mentia para a mãe, caía duro para trás de tanto rir de alguém, caçoava das visitas e até do padre. O mais incrível é que rezava o terço com a Samaria. Por Deus, o papagaio parecia gente.
Dizem que os papagaios vivem no máximo oitenta anos. O Louro viveu cem, também não era para menos, um papagaio tão especial como ele tinha que ter sido diferente dos outros. Considerava a Samaria sua melhor amiga, e ela assim também o considerava. Conversava com ele como se ele entendesse tudo, e quem poderia dizer que não? Se ela dizia: xiii Louro, vai chover, ele respondia: vai sim, vai sim. Quando eu disse que ele rezava o terço com a Samaria, talvez tenha exagerado um pouco, mas é certo que depois da Ave Maria, o Louro respondia: Santa Maria, amém. Isto ele falava sim senhor! Assim ouvi dizer.
O pessoal da casa se divertia em provocar o Louro na hora das refeições, principalmente as crianças. O papagaio ficava dentro de um viveiro imenso dentro da imensa cozinha que era de chão batido caiado de branquinho. E lá o Louro também provocava a família. Se a matriarca dizia para um filho: fica quieto e come menino, o Louro dizia lá do canto dele: come menino, come menino. E alguém retrucava: Cala boca, Louro! Todo mundo ria e o papagaio ria pra valer. Pra resumir, o Louro era a alegria da casa. Acompanhou gerações em cem anos de pura curtição. Viu gente nascer e morrer, e lá estava ele vivendo mais do que todo mundo.
Quando morreu certo tio da família, sujeito resmungão e desafeto do Louro, tiveram que levar o viveiro e papagaio pra longe da casa porque o Louro não parava de gritar: vai tarde, boboca, vai tarde, boboca ... Como é que pode?
Mas o vexame maior foi com o padre que ia sempre visitar a família. Ninguém sabe de onde o Louro tirou essa ideia, mas ficava gritando: “o padre quer casar, a benção seu padre! O padre quer casar, a benção seu padre!, O padre quer casar, a benção seu padre! ...” e tudo isso sem parar, repetindo, repetindo até que a Samaria tirava o Louro do viveiro, e falava: “cala a boca, papagaio sem-vergonha, descarado, debochado, seu excomungado! Eu ainda te torço o pescoço, é hoje!”. O padre fazia que não ouvia, e os velhos da casa falavam alto para encobrir a fala do Louro.     
Contavam que o patriarca tivera um filho fora de seu casamento e que havia tentado esconder o fato da mulher. Só que quando ela soube do acontecido, pôs o velho por diante para fazer o que era certo. Neste meio tempo, o sujeito morreu tragicamente, e o patriarca, consumido pela culpa, mandou celebrar centenas de missas por alma dele. Sem que ninguém ousasse falar o nome do filho morto, o Louro passou a gritar “Cupertino, Cupertino”! várias vezes por dia. E quando o patriarca chegava à cozinha, o papagaio mexia com ele, dizendo: “papai, papai”. O velho não teve dúvidas, passou a acreditar piamente que o papagaio era uma encarnação do filho e passava as tardes ao lado do Louro, desculpando-se por não tê-lo reconhecido. A Samaria mexia os paus no fogão à lenha e balançava a cabeça como quem diz: “Seu Tonico endoidou”.
Seu Tonico morreu, a Samaria morreu, meus pais morreram e o Louro completou cem anos. Depois da morte da Samaria, dizem que o Louro manteve a cabeça baixa e os olhos fechados, sem comer nem beber água. Guardou três dias de luto. Foi melhorando devagar até que ficou feliz novamente. O patriarca só faltou levar o Louro pro quarto, o que a matriarca não aceitou de jeito nenhum. Assim me contaram.  

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quarta-feira, 12 de abril de 2017

Escritora Fantasma

Escrevo, gosto de escrever, é claro, mas nem sempre gosto do que escrevo. Às vezes vibro com uma crônica que acabou de sair quentinha do forno ou com um conto que achei genial. E acontece que outras vezes torço o nariz, acho medíocre, bobinho, tiro isso, ponho aquilo e não fico satisfeita. Não sou agraciada como uma grande Adélia Prado, sei que a poesia não é hóspede assídua em minha alma, só passa de quando em quando para uma visita rápida, mas quando vem, mesmo furtiva, traz presentes tão preciosos que recebo feliz, cheia de gratidão. E vou trabalhando de sol a sol, cultivando histórias, sonhos e colhendo os frutos, os fatos, os feitos, e tentando transpor tudo isso para o papel, ou para a tela em branco que me olha interrogativa como neste momento.
            Já foi o tempo em que eu ia atrás de meu marido e de minha irmã, com uma crônica pronta para que lessem. Era imperioso ouvir sua opinião ou qualquer opinião que fosse, e aí o que vocês acharam? Bem, não foi uma nem duas vezes que percebi que o marido já tinha perdido o fio da meada da minha leitura em voz alta fazia tempo, sabe-se lá por quais paragens sua mente vagava, e minha irmã, depois de dias em que eu esperava ansiosa por seu parecer, era assim: como sempre, gostei! Meio que sem muito entusiasmo. Larguei mão disso. Sem mágoa nenhuma, assumi que não precisava fazer pressão em cima de minhas duas cobaias literárias, os dois, coitados. É assim mesmo, santo de casa não faz milagres e o profeta não é bem recebido em sua própria terra. Minha prima escreveu uma brilhante tese de doutorado que fez tremer os baluartes da enfermagem no Brasil e, no entanto, me segredou que nenhum de seus irmãos leu seu trabalho. É assim mesmo. Agora escrevo e pronto.
            Aconteceu que fiz uma crônica sobre mulheres para não deixar passar em branco o Dia Internacional da Mulher, e pedi para a filha de uma amiga nossa do grupo postar para todas em nosso whatsapp antes que fosse para o Face ou para o Blog. E minha irmã, distraída da vida, leu encantada, pensando, nossa que lindo! De quem será esta crônica? De onde a Giovanna tirou? E foi se encantando, cada vez mais, já pensando em me enviar porque realmente a crônica estava muito boa, palavras dela, genial, isso, a palavra era genial. Até que chegou a certo parágrafo que falava da mãe da autora, e minha irmã foi reconhecendo nossa mãe, e pensou, só pode ser ela, mas como? Então é da Misa esta crônica? E foi até o final quando tudo se confirmou. Rimos pra valer. Talvez se eu tivesse enviado antes, ela diria: está bom, como sempre! Não sabemos, mas achei ótimo ter ficado anônima! Minha irmã encantou-se com a crônica sem saber que era minha! Como uma estranha escritora fantasma, consegui encantar seu coração!
            Adorei! Nada como um depoimento genuíno desprovido de quaisquer laços afetivos, influências ou obrigações. E enquanto a poesia se faz de rogada às minhas súplicas, continuo trabalhando de sol a sol. Vou às fontes, consulto os mestres, leio poemas que me inspiram a fazer prosa, como Carlos Drummond de Andrade que me diz hoje para “comer queijo com goiabada, ouvir uma serenata, calçar um velho chinelo, sentar numa velha poltrona e tomar um vinho branco enquanto ouço o Bolero de Ravel.” Acho que hoje estou triste, mas deixo o mundo acontecer. É preciso escrever.

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quarta-feira, 5 de abril de 2017

Depressão Sazonal

Estou feliz, alimentada e amada. Nada me dói no corpo. No entanto, alguma coisa lá bem no fundo da minha alma reclama não sei o quê. Não sei se é o verão que já começa aprontar as malas para ir embora. Na verdade, esta mudança de estações sempre me provoca uma sensação esquisita, ainda que o calor continue insuportável. O outono faz seu prenúncio com um aroma de algo que não se pode explicar por palavras. Sinto no ar seu cheiro bom e triste que vem aos poucos me enredando. Não há como fugir disso. Depois do outono é fácil seguir, o inverno não me causa estranheza, muito menos a primavera, nem o verão. Mas o outono é inexorável demais. É a vida que passa. Não é sem razão que se costuma dizer: no outono de minha vida. A única coisa que permanece é a mudança, leio isto agora numa mensagem de uma prima. Benditas sejam as primas que tanto nos confortam!

Não sei, também pode ser que algum dos fantasmas do passado tenha vindo me assombrar, trazendo um arrepio de saudade ou de inconformidade. Eles sempre vêm, vez por outra. Ou ainda esta hora difícil quando escurece findando mais um dia e dando lugar a um crepúsculo sombrio que precede a noite. Tudo mexe com a gente. A sabedoria da madureza que não garante a felicidade, o silêncio pesaroso do crepúsculo, um arrependimento qualquer, a pilha de roupas para passar. Nesses dias estranhos mal consigo rezar. Tudo o que falo pra Deus soa falso e sem sentido, mas sei que é sincero. Deus também é inexorável demais, assim como o outono. Fez as estações para nos lembrar dos ciclos e das perdas irremediáveis, da vida que passa e da mudança que permanece. A nós só cabe aceitar. Deus é Deus. Bendito seja Ele.

 Penso nas impossibilidades que não consegui tornar possíveis. O real é tão tangível e visível aos olhos, mas teimamos em sonhar e viver de coisas impossíveis e etéreas, tateando o ar, mergulhados no escuro. Penso nos milagres tão sonhados e nunca vistos, nas árvores abatidas impiedosamente, no sol causticante, nas crianças sírias sofrendo tanto. Contudo tenho esperança porque o mundo é muito louco, a vida é imprevisível, triste, porém, bela. Ainda há flores, alguma sombra fresca, águas escorrendo das minas, o mar continua sendo um mistério, a gatinha pretinha ainda brinca de perseguir a bolinha de papel, o que me faz sorrir e quando eu sorrio fico mais bonita! Também enxergo sem óculos! Se puder, não se queixe, dizia Santa Teresa!

Tudo bem, que venha o outono, os fantasmas, o silencioso e triste crepúsculo! Nunca vamos compreender por que essas coisas nos afetam. Nosso lado oculto sempre vai ser mesmo o maior mistério do mundo! O que realmente a gente precisa não é tanto ser feliz, antes amar e armar-se de coragem porque é o que a vida exige de nós a cada dia.   

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quinta-feira, 30 de março de 2017

Adorável Pretinha


Aproveitando o gancho de Rafael Botter sobre "gatos mágicos", escrevo aqui sobre uma gatinha pretinha adorável!

Chego ao prédio de minha irmã. Meu marido me espera no carro, tem a ilusão de que vou apenas levar o teclado até lá em cima e volto correndo. O que ele não sabe é que vamos falar atabalhoadamente sobre pelo menos dez assuntos, tudo em oito minutos. Enquanto falamos, tiro apressadamente um cheque da bolsa para acertar nossas contas. Mesmo em pé, debruço-me sobre a mesa e começo a preencher o cheque, e aí minha irmã me chama a atenção em tom baixo para não quebrar o encanto:

- Misa, olha quem está aí pertinho de você.

            Eu acordo de meu torpor robótico, imerso num universo avesso à sensibilidade das criaturas e da natureza. Paciência. Vivo no mundo da pressa, dos atos imediatistas, da correria absurda que me anestesia e me aliena. Confesso que preciso sempre me beliscar para não perder um mundo tão lindo que acontece e que displicentemente deixo passar. Sou consumida pela vida caótica, pela ansiedade e urgência das providências. 

Mas paro e olho. É ela, a adorável pretinha, Nina, em cima da mesa, pertinho de mim como se quisesse me saudar. E ela quer, de fato. Já me conhece, e demonstra seu amor por mim. É a gatinha que minha irmã salvou do mundo cruel. Como se não bastasse nosso adorável Bichinho, que já é um respeitável gatão gigante todo plácido e amoroso, Agueda traz da rua uma microgatinha pretinha, com os bigodinhos queimados por um humano capaz dessas atrocidades. A Nina chegou, toda ela, com uma personalidade totalmente dela, arisca, charmosa, dengosa. A princípio pensamos que não ia dar certo. Até já cogitávamos de fazer uma sessão de fotos para oferecê-la no Face, pois o Bichinho se encrespava todo, disposto a não ceder lugar para a nova integrante da família. Que nada! Logo se entenderam e hoje são mais amigos do que nunca. Afinal os animais se entendem, os humanos é que não.

Nina chegou doentinha. Logo foi para o veterinário, tomou isso mais aquilo, parecia uma isquinha de gato, de tão magrinha e fragilizada. Minha irmã me relatava por telefone cada progresso da recuperação da gatinha. Não houve como não me encantar de imediato com o vocabulário incrivelmente original e cheio de sensibilidade de minha irmã para falar dos bichanos. Eu achava a maior graça toda vez que ela usava certas frases com expressões que fariam os linguistas se deliciarem. Dizia ela:

- Misa, a Nina tá tomando direitinho o remedinho dissolvido na água. Tudo com muito inho e inha. Depois de dias sem se alimentar direito, ela está dando “linguadinhas” no pratinho.

Ou:

- Misa, a Nina ficou um tempão examinando minuciosamente a caixa do ventilador. Decididamente, tudo de novo que entra pela casa tem que passar “pelo crivo” da Nina. A gatinha tem se mostrado uma espiã de tal envergadura que faria Miss Marple morrer de inveja.

            Mas tornemos à Nina em cima da mesa. Mantém aquela posição típica dos felinos quando escondem as patinhas que ficam dobradas e “guardadas” junto ao corpo. Parece uma bolinha preta. Os olhos fecham-se languidamente, para depois se abrirem com jeito de sono, como se quisesse lançar piscadelas sensuais. Já sabemos que isso é sinal de amor e carinho. Eu não me seguro. Começo a falar com ela naquela linguagem que as mães adoram falar com os bebês. E eu chamo: kit kit kit kit ... ti belejinha, veio cumprimentá a tia Misa! Qué coçá baiguinha?. Mas se ergo as mãos para acariciá-la, já sei, ela se afasta, foge. Nunca soubemos se isso é da raça, ou dela própria. De vez em quando ela se joga no chão para que cocemos a barriguinha, mas se ousamos abaixar para pegá-la, ela se esquiva. Um amor. Um amor.     

            Sempre que posso vou visitar minha irmã e brincar com os gatinhos. Eles me remontam a um passado distante, quando eu, ainda menina, chegava da escola, arrancava às pressas o uniforme, botava um short velho e ia para a casa da vizinha brincar num gramado alto com um gatinho encantador que já me esperava lá escondido dentro dos tufos de capim. Eu não sabia, mas era minha dose de remédio para suprir a ternura tão necessária na vida de todos nós.

            Amo os cães e amo os gatos. São tão diferentes e tão ternos, cada um a seu modo. Nina é pequena, mas mostra que dentro dela mora uma grande alma de felino que desperta a cada instante para atender aos seus instintos. Passa longos momentos sem mover um músculo, em posição de ataque para perseguir um tiquinho de inseto no teto. Nada mais a interessa do que caçar aquele bichinho. Mesmo sendo apenas uma minúscula gatinha, parece que dentro dela vive um tigre ou um puma com todos seus instintos raciais em pleno vigor. 

            Gosto tanto dos cães e gatos e, no entanto, não os tenho comigo. Por que será? Tento justificar para mim mesma que moro em apartamento, que podem incomodar os vizinhos, ou que se formos viajar, é um sofrimento a mais. Para dizer a verdade, tenho medo do trabalho. É como se eu adorasse bebês só para brincar com eles, mas na hora da doença e de manter a área limpinha, aí to fora! Mas de uma coisa estou certa, quem convive com cães e gatos tem um olhar diferente sobre a vida. Como diz minha irmã: “não há o que pague a ternura de abrir a porta e dar com meus gatinhos bem à minha frente, esperando por mim.” Pura verdade.    

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quarta-feira, 22 de março de 2017

As Alegrias de Dona Lalá

Dona Lalá era mulher fina, educada com todos os requintes da etiqueta. Mesmo tendo que se mudar para uma cidadezinha onde todo mundo era simples, não dispensou os detalhes que denunciavam sua incontestável finesse. Por exemplo, para todas as refeições em sua casa, mesmo as diárias e rotineiras com o marido e as filhas, a mesa era guarnecida com louça inglesa, diversos talheres e taças, guardanapos de tecido, tudo combinando. Ela fez questão de ministrar aulas de etiqueta e arte da mesa para a Tonha, moça simples, criada entre pratos e canecas esmaltados. Tonha vivia vestida de empregada inglesa, com touca na cabeça e achava tudo muito bonito. Aprendeu tudinho. Quando Seu Jorge chegava do serviço, Dona Lalá ia receber o marido na porta de casa com um discreto e rápido beijinho na boca. Pegava seu paletó e chapéu (na época ainda se usava chapéu) e enquanto ele dava uma olhada no jornal, ela trazia um cálice de xerez e ficava ao seu lado, lendo a página feminina. Daí a pouco, a Tonha batia o sininho para avisar que o almoço estava pronto e depois do almoço servia um cafezinho em xícaras de porcelana e bandeja de prata. Nos domingos à tarde, ela e o marido ouviam Verdi e Puccini. Assim era a fina rotina na casa de Dona Lalá.

Ela teve quatro filhas que fez questão de educar no mesmo requinte. As moças tinham aulas de piano e bordado e só não tinham aulas de balé porque a cidade não dispunha do curso. Logo que entraram em idade de namorar e casar, Dona Lalá se apressou a dar aulas de prendas do lar para as meninas. Em pouco tempo já sabiam como fazer um verdadeiro chá inglês, rosquinhas e bolos de frutas. O enxoval, ah, este era cuidadosamente providenciado, com tantos jogos de cama de algodão puríssimo, tantas colchas, edredons, etc, etc... tudo como mandava o manual de Economia Doméstica do Colégio de freiras.

Mas faltava ensinar sobre a intimidade, aquela da alcova, como se comportar na primeira noite de casados. Então, com muito jeito, Dona Lalá ia escolhendo as palavras aqui e ali para descrever o orgasmo, coisa que as meninas supostamente deveriam conhecer e sentir apenas quando envolvidas sexualmente com o marido. Nada poderia garantir que não fossem sentir o tal orgasmo antes do casamento, mas para todos os efeitos, as moças sentiriam o fino gozo depois de casadas e não antes. Sozinhas, então, nem pensar. Ou melhor, nem pensar em abordar tal questão, afinal moças finas eram mais preservadas de assuntos e sensações mundanas. Dona Lalá, não encontrando outra palavra que melhor definisse a gloriosa sensação, disse às filhas que elas sentiriam uma singular “alegria”, algo que não podia ser posto em palavras, de tão peculiar, tão original e tão gostoso, deixando escorregar esse último adjetivo num delicioso ato falho.

Dona Lalá, sem querer, ensinava de modo eficiente o que havia sentido, o que leva a crer que era muito feliz com seu Jorge, ou que sempre sentira muitas alegrias com o marido. Afinal, só pode ensinar uma verdadeira alegria quem soube aprender o que é verdadeiramente gostoso. E assim ela ensinou corretamente às meninas as delícias do sexo, conferindo ao orgasmo matizes singelos e líricos, conforme as propriedades coerentes de seu fino caráter.   

Certíssimo. Quem já não esboçou um sorriso matreiro depois de uma forte alegria?


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quarta-feira, 15 de março de 2017

Momento Mágico


Aconteceu de novo: o momento mágico! Estava descendo o morro de carro e me deparei com a cidade ainda banhada pelo sol se retirando para dormir. Os raios ainda eram fortes e bateram em meus olhos ofuscando tudo à minha volta. Mas parei o carro e olhei cheia de encantamento. Era lindo! De repente, de novo e sempre me vem aquele pensamento de que estamos em cima de um planeta que gira em torno de si mesmo e do sol. Confrontada por esta verdade incrível, eu me ausento de mim. Uma força suave me suspende do mundo. Não sei se é a alma que se solta do corpo ou algum anjo que está silenciosamente ao meu lado. Em um ataque fulminante de ternura, sou imensamente feliz e agraciada e saciada de beleza. É como se estivesse nascendo agora e enxergando o mundo pela primeira vez. Não importam mais os senões, a dependência disso ou daquilo, o passado, o presente ou o futuro, e os fardos podem ser gentilmente deitados ao chão. O que realmente importa é que neste raro momento que me assalta de quando em quando é que percebo a beleza das coisas mais cotidianas, mais simples, mas cheias de grandeza. Não assisto ao por do sol todos os dias. Deveria. O momento mágico é aquele em que percebemos ou sentimos a vida pulsar, ou enxergamos a vida assim como as crianças, sem aquelas escamas que já cobrem nossos olhos desde a adolescência. Sim, é fato que ao crescer perdemos esta dádiva que só as crianças possuem. Entretanto, a menina aprisionada dentro de mim de repente consegue se esgueirar por alguma fresta e me toma por inteiro. Aí eu posso ver o sol, também posso ver a água que escorre pelas minhas mãos, posso ver atentamente as flores de primavera, cada detalhe, cada cor. Posso ouvir Mozart, Kate Bush ou Fred Mercury, sentindo minha alma subir até o céu. Posso ir até o fundo dos oceanos onde provavelmente o gênero humano tenha nascido das águas profundas como assim afirmam alguns e descobrir cavernas cheias de mistério e beleza. Como o mundo é belo! Então o sol é assim? E a água, nossa que linda! O momento mágico! Afinal, a prisioneira é a menina que habita em minhas profundezas ou sou eu?A menina que tudo sabe em sua sabedoria inata e que ainda não conhece nem participa do inevitável caos que a espera. Sim, sou eu a prisioneira que vive encerrada em masmorras pesadas e tristes. Também é fato que prisões existem de todas as formas. E a liberdade mora dentro de nós, a gente é que nunca se convence disso. A menina é quem vem me libertar, que vem me salvar da mesmice, e vem me ensinar tanta coisa bonita que já me esqueci, que me alerta que a vida exige o “despojamento de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra” como descobriu G. Rosa. É o momento mágico quando nós duas nos encontramos. Mesmo em raros momentos de êxtase, nesta estranha e súbita epifania, descubro que só por estes momentos vale a pena viver. Vale dizer que o sol se põe quase todas as tardes e quando chove também é tudo tão bonito, ou isto ou aquilo, como dizia Cecília Meireles. Maravilhas cobrem este planeta onde habitamos, mas só podemos enxergar esta beleza se a tivermos dentro de nós ainda que em raros e preciosos momentos de pura magia! Um bom final de semana de raros momentos mágicos a todos!


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quarta-feira, 8 de março de 2017

PARA AS MULHERES (e homens também)

Quando eu estava no colégio, ainda mocinha, veio uma senhora fazer uma palestra sobre “família feliz”. Nunca me esqueci de que ela dizia que tudo estava nas mãos da mulher, ou seja, a chave da felicidade da família. E que tal felicidade dependeria unicamente, segundo ela, da capacidade da mulher de compreender o estado de espírito de cada pessoa da família, e com incrível e hercúlea habilidade, reverter um mau humor aqui e ali, salvando tudo e todos. E o homem? E os filhos? Então cá eu fico pensando com meus botões, e reflito como sempre tanto foi exigido da mulher, quanto peso foi colocado em suas costas. Evidentemente que aquela palestra foi no tempo antigo, e óbvio que quase nunca haverá uma mulher assim com tamanha sabedoria e tanta perfeição. Sabemos que cada pessoa tem um temperamento, e que a felicidade sempre vai escapar não se deixando aprisionar a não ser por pequenos e poucos momentos. Caras feias, indiretas e diretas fazem parte da vida e do dia a dia, mas nada que não se resolva com o perdão diário.
            O homem, de maneira geral, salvo raríssimas exceções, ainda espera chegar a casa e encontrar uma mulher perfeita. Mas gente, ele também poderia ter uma cópia da chave da felicidade. Feliz o homem que se dispõe a lavar a louça, que também ajuda os filhos com as tarefas da escola e ainda sabe acolher sua mulher com um abraço apertado e momentos de amor. Feliz o homem que consegue compreender, melhor dizendo, que consegue aceitar as sutilezas da alma feminina. São poucos, viu?
Uma conhecida me contou que lá pelos idos de 70, após casar-se foi morar em Brasília. O marido só chegava à noite, e ela morria de saudades da família aqui em Minas. Chegou num ponto tal que um dia, ao entrar em casa ele deu com a mulher chorando sentada em cima da mala já pronta. Assustado, pensou que talvez alguém tivesse morrido, mas ela, entre soluços entrecortados lhe disse que eram só saudades, que sentia falta da mãe, das irmãs, que ia embora. Ele teve a maior paciência, abraçou a moça no abraço mais carinhoso de que foi capaz. Ela desistiu de voltar para Minas e eles foram felizes para sempre. Feliz o homem que sabe acolher as lágrimas de uma mulher que nem mesmo sabe por que chora, talvez a saudade da família, ou uma cena de filme, ou uma foto de alguém querido que já se foi, ou ainda pura e simplesmente uma ebulição dos hormônios. As mulheres são seres estranhos mesmo: são tão frágeis e delicadas como fortes e intensas!
Há mulheres que se contentam apenas com o trabalho de mulher, mãe e dona de casa. Tudo bem. Cada uma é cada uma. O foco é tentar ser feliz. Mas há outras que são dotadas de asas e ânsias. Querem voar, querem conquistar, almejam mais do que viver entre as paredes da casa. Certíssimo. Que vão e voem em busca de seus sonhos. Impossível não me lembrar de minha mãe que sempre dizia: se eu tivesse tido oportunidade, teria estudado “leis”. E agora voltando no tempo, acho mesmo que ela teria sido uma brilhante advogada ou talvez uma imponente juíza. Seu porte e seu jeito de ser não era para menos. E finalizo com a fala de Adélia Prado, que homenageia as mulheres anônimas e simples: “... exijo a sorte comum das mulheres nos tanques, das que jamais verão seu nome impresso e, no entanto sustentam os pilares do mundo, porque mesmo viúvas dignas não recusam casamento, antes acham o sexo agradável, condição para a normal alegria de amarrar uma tira no cabelo e varrer a casa de manhã.”
Para os homens deixo um conselho precioso que ninguém pediu, mas dou assim mesmo: querem ser tratados como reis? Então façam suas mulheres se sentirem rainhas. É infalível!
Parabéns para nós todas, mulheres maravilhas e maravilhosas que curtimos testar novas receitas, que curtimos ler, escrever, fazer sexo, cantar, cuidar de casa, do bebê, trabalhar no que gostamos e ainda curtimos um sapato bonito em alguma vitrine de uma loja qualquer.  

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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Lua Cheia

O cara sempre foi meu amigo, para dizer a verdade, coisa de mais de quarenta anos. Passamos os dois num concurso público, trabalhamos juntos na mesma seção, eu frequentava sua casa, era padrinho de seu filho mais velho. Nossas mulheres também eram amigas, faziam quitutes em nossas reuniões de finais de semana. Nossos filhos estudavam e brincavam juntos, enfim nada havia que eu não soubesse dele e ele de mim. Era realmente uma amizade verdadeira. Isso não existe, você poderá dizer argumentando que pessoas são sempre falhas e cheias de misérias humanas. Bem, é possível, mas o que realmente causou o fim de toda aquela amizade nada teve a ver com fraquezas humanas como inveja ou traição. Mesmo depois de muitos anos, as pessoas ainda me perguntam a razão de nosso afastamento. Eu me calo. Não ouso contar a verdade, a não ser para a tela em branco que recebe o que não tenho coragem para falar.
            Damásio era seu nome. Era uma pessoa muito legal, isso mesmo. Eu o admirava profundamente. Ele estava sempre pronto para ajudar quem quer que fosse. Era engraçado, inteligente, enfim, boa pessoa. Sua figura física não era daquelas que as mulheres viviam suspirando, não, isso não. Damásio mais parecia um tísico, branco demais, nariz adunco, magro de ruim.
            Bem, como sempre fazíamos em pescarias ou passeios em geral, lá estávamos voltando para casa já de noite, não tarde, talvez umas sete horas, hora em que o céu já está totalmente escuro no inverno. Eu, particularmente, não sou de sentir muito frio, mas por duas vezes, ainda quando estava claro, senti um calafrio esquisito. Dizem que as coisas trágicas, os acontecimentos de desastre, enfim as coisas do mal sempre avisam. A gente é que nunca tem olhos, nem ouvidos, nem entendimento para compreender. O carro enguiçou, aquela coisa chata de parar mesmo no meio da estrada, no meio do nada literalmente porque não havia um posto, uma casa, uma luz que não fosse a da lua e de umas poucas estrelas que brilhavam sem vontade, opacamente. Ao contrário de outras vezes em que sempre voltamos para casa animados e falantes, estávamos os dois quietos, estranhamente quietos.
            Bom, fizemos o que foi possível para reanimar o carro. Nada. O que atrapalhava mais era a escuridão que começou a ficar densa. A lanterna? Você certamente perguntará, sim porque dois homens feitos que habitualmente conduzem carros à noite não podem se esquecer de tal item de segurança, como também ferramentas e outras coisas importantes que alguém de bom senso leva no carro quando se vai para outros lugares, ainda mais na montanha. Pois voltávamos de lá, da tal montanha e não achamos a lanterna. A estrada cheia de curvas. O fato é que estávamos os dois ali, na mais completa escuridão, com um carro que não funcionava. Nada havia a ser feito a não ser caminhar seguindo a estrada que tínhamos pela frente. Decidimos seguir a pé e fomos os dois. A escuridão era tamanha que eu mal enxergava meu amigo. Apenas se via a lua enorme, cheia, mas que estranhamente não radiava claridade alguma, ou era impedida por uma espécie de fog londrino. Nunca eu havia visto uma lua tão grande em noite tão escura.
            Em determinado ponto, ele me chamou:
- Téo, eu preciso te contar uma coisa.
            Confesso que estranhei a seriedade dele. E eu disse:
- Fale Damásio, estou bem aqui, apesar do negrume da noite.
- Téo, eu sou um lobisomem.
            Aí não pude deixar de rir. Ri com gosto. Só ele mesmo para desfazer o mal-estar provocado pela escuridão e pelo aborrecimento de estarmos naquela situação. Ele não riu, bem, eu não o via, mas sabia pelo seu silêncio que ele estava sério. Entretanto, eu conhecia muito bem meu amigo, e este seu lado brincalhão e espirituoso era o que eu mais gostava nele. Ele era capaz de fazer brincadeira com a coisa mais séria do mundo sem ser inconveniente. Era fantástico. Eu não parava de rir. Era um acesso de risos desses em que a gente não consegue parar. Eu não tinha esse ataque há muitos anos e isso me fez muito bem. Ele esperou pacientemente que eu parasse de rir, ou que pelo menos fizesse uma pausa. Aí ele veio à carga:
- Téo, é sério, nunca falei tão sério em minha vida. Veja bem, eu jamais contaria isso se você não estivesse correndo risco de vida. E está agora. Olhe, eu vou contar tudo depois com calma. Você sabe que é meu melhor amigo, que eu nunca lhe faria algum mal, mas essa situação de hoje é atípica. Não deveríamos estar aqui, não agora, com essa lua cheia. Eu preciso que você corra o mais rápido que puder.
            É claro que desabei no riso de novo. Eu só conseguia dizer:
- Pare, pare com isso que eu vou começar a passar mal. Esta sua é de gloriosa como dizia minha mãe.
            E ele:
- Téo, eu juro, você acha que em situação normal eu contaria isso para você ou para qualquer outra pessoa? Quem iria acreditar? Ninguém! Nunca! Por que eu nunca contei? É por isso. Porque ninguém acredita. Mas eu não contava com isso, com nós dois nessa noite preta. Sabe, não é sempre toda noite de lua cheia que eu viro lobisomem, mas quando vou virar eu sei direitinho, eu sinto. Aí não respondo por mim, não sou mais eu. Eu tenho medo do que pode acontecer. Suma de mim!
            Aí nesse momento ele gritou e estava bravo pra caramba. Eu comecei a estranhar. Também fiquei bravo:
- Chega dessa brincadeira sem graça. Nem sei quanto falta pra gente alcançar um lugar civilizado, com luz e tudo.
Mas desse momento em diante, caiu um silêncio sepulcral. Ele não falava nada. Está aborrecido porque eu fiquei bravo, pensei. Mas continuei andando. O mais estranho é que eu não ouvia nenhum passo a não ser o meu e a sensação de que ele tinha sumido era muito grande.
Aí chamei:
- Damásio, desculpe, mas você está me assustando. Fale alguma coisa.
            E nada. Daí a pouco comecei a ouvir um barulho, parecia o som de pisadas ou de cavalgada de um animal pesado, como se fosse um porco grande ou um touro ou sei lá o quê. Instintivamente comecei a correr e o barulho aumentando, significando que fosse o que fosse já quase me alcançava. Desabalei. O pior é que não sabia por onde corria, se continuava na estrada ou não. A coisa piorou. Comecei a ouvir algo como um resfolegar, era de um bicho, aquilo não era humano. Eu corria feito um doido e rezava, logo eu que não era disso. De repente devo ter saído da estrada, senti um baque, tudo rodava. Juro que não sei o que aconteceu exatamente, se o bicho me pegou ou se eu rodei barranco abaixo. Desmaiei e não vi mais nada.
            Só acordei no dia seguinte no hospital. O próprio Damásio e outros roceiros me encontraram caído e esfolado numa vala, coisa de cinco quilômetros longe do carro, isso ele contou para todos. Contou a versão dele, é claro. Disse que caminhávamos na escuridão e que eu de repente sumi, ou seja, que não respondi mais. Ele insistiu que gritou meu nome várias vezes, mas não teve alternativa senão esperar que clareasse o dia, pois a escuridão era medonha. Eu tinha arranhões feios nas costas que pareciam ter sido feitos por garras afiadas. Estava queimado pelo frio e esgotado. Sinceramente, não me lembro do que aconteceu quando caí ou quando fui derrubado. Quando minha mulher e meus amigos me perguntaram eu disse que não me lembrava de nada.
            Damásio foi me visitar no hospital. Estava mais branco do que nunca e me olhava com pena. Não dei uma palavra sequer com ele. Todos perceberam que alguma coisa havia acontecido, mas eu é que não ia dizer e passar por trouxa ou maluco. Assim que tive alta tratei de me mudar com a família para bem longe. Mas antes fui procurar por um dos caboclos que estava presente quando me acharam desmaiado. Ele me contou que nunca vira nada igual, que o capim alto fora derrubado como se uma manada inteira estivesse desembestada pelo campo.
            Nunca mais vi Damásio nem ouvi falar dele. Hoje revejo nosso passado e ligo muitos fatos que na época passaram desapercebidos. Ele era um homem bizarro, tinha comportamentos esquisitos, mas daí a ... Bem, se ele era de fato um lobisomem não sei dizer, mas que aquela noite era de uma estranha lua cheia, isso era. 

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quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Mudando o Foco

Em razão da grande enchente que ocorreu aqui em Itajubá há 17 anos, tivemos que levar meus pais para um apartamento enquanto a velha casa sofria uma grande reforma. Logo após a mudança, minha mãe começou a apresentar um comportamento estranho, e um exame apontou um provável início de demência. Infelizmente só mais tarde aprendemos que mudanças de casas e lugares podem ser desastrosas para pessoas idosas. Foi o início de uma fase cruel que tivemos que enfrentar. A demência nunca regrediu, sequer estacionou, só avançou cada vez mais. Talvez tivesse acontecido de qualquer maneira, quero dizer, se não fosse a mudança, algum outro fator desencadearia a demência, como uma cirurgia, um susto que fosse, no caso, a própria enchente que foi um acontecimento tão devastador. Fomos aprendendo com o que tínhamos pela frente, no dia a dia. Foi um duro caminho de pedras, mas até entre as pedras nascem flores, assim, não posso dizer que viveria tudo de novo, que choraria todas as lágrimas que tive que chorar, mas digo com certeza que foi um período profuso de aprendizado de amor e de ternura, pois não é no sofrimento que tiramos as mais belas lições?
            Bem, não existem manuais para a vida, apenas dicas de quem já passou pelo problema, e há coisas realmente importantes que podem ser aprendidas como não colocar o idoso debaixo de uma ducha forte, pois para quem está fragilizado com a idade e doença, qualquer água é uma cachoeira assustadora. Falar alto quando a pessoa está de costas também pode ser ameaçador. Enfim, realmente não há regras a seguir porque a vida nunca é exata. Estou falando isso porque num prazo curto de tempo vi dois exemplos de mudança de idosos que foram bem sucedidos.
            O primeiro caso foi de uma senhora, que já demente e muito triste, foi levada para o campo, para a casa da filha. Lá, entre as árvores, flores e chilreados de pássaros, a senhora acalmou-se, descobriu que podia sorrir novamente. Reconheceu os filhos, leu partes do livro da filha, lembrou-se de detalhes, ou seja, a mudança foi altamente positiva, talvez pela mágica da natureza que remexe com nossas mais longínquas e preciosas lembranças, trazendo à tona uma imaculada alegria infantil, como o ruído da chuva no telhado e vidraças ou o raio do sol entrando por alguma fresta da janela. 
            O segundo caso, mais estranho, foi de outra senhora, abatida pela morte do marido já há um ano. Não era demente, apenas já um pouco confusa pela idade e aparentemente refém de uma irremediável tristeza pela perda do companheiro. Cada acontecimento como Natal, Ano Novo ou aniversário ocasionava um transtorno em todo o sistema físico da senhora. A pressão subia, a respiração alterava, os sinais vitais ficavam comprometidos, e assim os médicos eram chamados, os procedimentos adotados até que tudo se estabilizasse. Todos os cuidados eram tomados de tal forma que ela não fosse afastada de sua velha casa centenária, com as lembranças do companheiro, da vida feliz de que estava ou esteve presente em cada canto. A televisão ficava sempre sintonizada no canal religioso que ela mais gostava. Mas com a última crise não foi possível mantê-la na casa. Foi trazida para o hospital e diretamente para a UTI.
            De forma surpreendente, ela abriu os olhos e se deparou com um universo totalmente diferente do seu costumeiro dia a dia. Tudo era estranho, as roupas das pessoas, as máscaras. Ela compreendeu que estava num hospital. Já se sentindo melhor com as providências médicas tomadas, passou a observar com interesse cada detalhe daquele estranho mundo. Comentou sobre a maneira como a limpeza do quarto era efetuada, conversou com as enfermeiras, contou algumas de suas histórias. Aos poucos seu semblante ficou sereno e ela se sentiu distante da casa povoada de lembranças. Seu bem estar era tão visível na companhia daquelas pessoas que até temeram levá-la de volta para casa.
            Isso também me fez lembrar de minha mãe certa vez passando a noite no Pronto Atendimento. Enquanto pingávamos de sono ao clarear o dia, ela já desperta, admirava o pátio interior do hospital repleto de plantas. E dizia: olha as plantas, que beleza!
            Tanto em um caso como em outro houve uma mudança de foco. A primeira senhora melhorou visivelmente com a benfazeja natureza, com a presença dos filhos que iam visitá-la como se fossem crianças em férias no campo. A segunda, afastada do ambiente que lhe angustiava pelas lembranças da perda do companheiro, sentiu-se talvez alegre como quando ia ao hospital para ter seus bebês.
            Cada caso é um caso, cada pessoa é única, e definitivamente não há regras para a vida. Contudo há uma regra infalível: quando pesarem na alma os supostos erros ao lidar com os pais idosos e dementes, há que se perdoar porque somos feitos muito mais de erros do que de acertos. Quase sempre erramos mais do que acertamos. Que bom que Deus sempre vê o coração.
            De outra forma, também podemos transpor para nossa própria vida a mudança de foco. Às vezes nos encontramos tão mergulhados nos problemas e nas preocupações que deixamos nos contaminar pelo medo e angústia. É preciso tentar mudar o foco, isto é, focar outra situação, assistir a um filme, viajar ali mesmo para o campo, conversar com uma pessoa serena, brecar as palavras e pensamentos amargos. Não vamos mudar a situação, mas certamente uma porta dentro de nós vai se abrir por onde a esperança poderá nos visitar.

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quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Besouros, Águias e Crianças (e Centopeias)

Li numa reportagem poética de Guimarães Rosa algo interessante sobre os besouros. Afirmava o escritor que a ciência, “em cômputos rigorosos” já demonstrara que o besouro não pode, de forma alguma, voar. Isso por causa da compleição do corpo, proporções, forma, peso, ou seja, cientificamente, os besouros não podem voar. Mas voam. Entretanto, acrescenta Rosa, às vezes acontece que um besouro descobre essa impossibilidade, e tomando consciência de sua inaptidão, não consegue subir nem mais um palmo e não se atreve mesmo.

De outra forma, há aquela história da águia que fora criada entre galinhas e acreditava ser uma delas, não podendo, pois, voar porque galinhas não voam (A águia e a galinha, de Leonardo Boff). Após insistentes tentativas do sujeito que não se conformava em ver uma águia acreditando que era galinha, a águia finalmente voa, aliás, teve que fazê-lo, uma vez que foi jogada do alto de uma montanha. Ou voava, ou morria. No fundo, a águia não acreditava que podia voar.

Mais outra história que tem tudo a ver: se não estou enganada, é no livro “O mundo de Sofia”. Embora eu tenha lido este livro, não me lembrava de um fato interessante que uma amiga trouxe à baila: mais ou menos assim, rezava a lenda que a centopeia dançava divinamente numa sincronia maravilhosa usando suas milhares de pernas (15 a 190 pares). Aí aconteceu que algum outro bichinho perguntou a ela como era sua técnica para usar tantas pernas ao dançar. E a centopeia parou de dançar para pensar como era a tal técnica. Conclusão: ela simplesmente nunca mais dançou.

Transpondo para a condição humana, verificamos que somos capazes de proezas incríveis, vencemos obstáculos intransponíveis, porém apenas quando nos vemos em uma situação limite. Normalmente guardamos nossas ousadias e preferimos ações mais comedidas, como se guarda a roupa de festa para as grandes ocasiões e usa-se a roupa modesta para dias comuns. E nossa vida acaba sendo uma monótona sucessão de dias comuns. O foco todo parece estar centrado, não naquilo podemos ou não, mas no que acreditamos que podemos. Não está no poder, mas no crer. O besouro não pode voar, mas não sabe disso, acredita que pode e voa. A águia pode voar, mas se criada entre galinhas, acredita que não pode e não voa.

Em um documentário de televisão já foi mostrado que pessoas que nasceram com deficiência no cérebro, contra todas as evidências científicas, desenvolveram aptidões normalmente tidas como impossíveis. O cérebro, vamos dizer assim, molda-se à situação exigida. Em outro estudo, uma pessoa era monitorada enquanto fazia exercícios ao piano. O cérebro então exibia a área afetada pelos movimentos dos dedos comprimidos ao teclado. Entretanto, outra pessoa sentava-se ao lado da que praticava ao piano, mas não se mexia, apenas observava os movimentos, acompanhando mentalmente. Pois não é que o cérebro dessa pessoa, também monitorada, apresentava a mesma variação da primeira? A força da mente é demais! Diga a uma pessoa do que ela é capaz e observe. De outra maneira, diga do que não é e também observe.

A criança não sabe que não pode, portanto, não tem medo de tentar, ela acredita e faz. A infância é receptiva e sábia, marcada pela intuição.  Não é por acaso que Jesus aconselhava que acolhêssemos o reino de Deus como uma criança. Quando nos tornamos adultos, vacilamos na fé. Vamos caminhando sobre as águas, mas tal como Pedro, quando o vento fica mais acirrado, somos tomados pelo medo e afundamos. Já não podemos mais contar com a sagrada inocência da infância em que todas as coisas são possíveis.

Sejamos besouros ou águias, ou ainda centopeias, tanto faz, importa acreditar. Melhor ainda, sejamos como as crianças. Se a gente não se fizer criança, a vida ficará difícil, seremos estranhos num mundo cada vez mais estranho e impossível. 

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terça-feira, 24 de janeiro de 2017

A piscina de Zé Hilton

Nos finais de semana a piscina era um verdadeiro “point” onde os jovens, mais velhos que nós crianças, se encontravam. Lembro-me dos maiôs antigos, dos risos, das tardes de céu azul, da água que espirrava nos olhos, do sol que queimava gostoso sem nunca fazer mal e do tempo que não passava, ou passava lento demais nos permitindo uma felicidade incrivelmente duradoura. Gosto do Saramago que diz que “naquelas épocas remotas, para as infâncias que fomos, o tempo aparecia-nos como feito de uma espécie particular de horas, todas lentas, arrastadas, intermináveis. Tiveram de passar alguns anos para que começássemos a compreender, já sem remédio, que cada uma tinha apenas sessenta minutos ...”

A piscina do Zé Hilton foi a pérola de minha infância. Jamais poderei esquecer os momentos de grande alegria que passei lá. Aprendi a nadar ali naquele pedacinho de água e também meus irmãos. Meu pai, vendo que não abríamos mão de ir à piscina, concordou que fizéssemos uma em nosso próprio quintal, para alívio de minha mãe. Demos início de imediato ao projeto, nós e nossos primos, cavando sofregamente um buraco. Mas neste tempo, chegou a notícia de que teríamos que mudar de cidade pela transferência de posto de meu pai. E ficamos a ver navios, ou melhor, piscinas e bem de longe. Asseguro que de todas do mundo, nenhuma outra teve água mais gostosa do que a de minha infância.

Nunca mais fui àquela piscina, é claro. Sei que hoje já nem existe, mas na minha vívida memória ela está intacta. Há pouco tive a oportunidade de ver fotos cedidas gentilmente pela Heloise, filha do Zé Hilton. Marejei os olhos de lágrimas e atravessei o tempo, me enrosquei entre as pessoas no preto e branco daquelas fotos e me senti inundada de alegria e gratidão. Fica minha homenagem e meu agradecimento ao Zé Hilton por ter contribuído para minha felicidade de pequena. No fundo, no fundo, não passamos de crianças que apenas cresceram. 

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segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Não Somos Donos

Estava relendo uma crônica da Cristina Hauser em que ela conta que experimentou soltar a trela que prendia seu cão durante um passeio. Em vez de o cão correr à sua frente como sempre parecia desejar, arrastando-a com força por todos os lugares, ele estancou. Aí andou um pouco, mas sempre olhando para trás como a certificar-se de que ela o seguia. Depois desistiu de ir à frente, optando por vir mais atrás, de onde certamente poderia vigiar sua dona. Eu disse “dona”? Sim, disse, mas não devia. Não somos donos de nossos cães, nem de ninguém e nem de nada.

Isso me fez relembrar meu admirável psicanalista de tantos anos atrás. Eu lia para ele um conto que fiz sobre a “Joia”, nossa cadela perdigueira, a última que meu pai teve e justamente por isso de quem mais nos lembramos com tanto carinho. Bem, enquanto lia, meu psicanalista ouviu com atenção como sempre fazia quando eu levava novos contos e crônicas. Depois, com a delicadeza que nunca dispensou um tom firme que até hoje me faz falta, disse: “não soa estranho a você que a palavra ‘dono’ apareça tantas vezes em seu conto?” Foi aí que parei para pensar e refleti. Fiz o conto narrado pela própria Joia e muitas vezes, ela, a Joia, se referia a meu pai usando a palavra “dono”. É verdade, respondi eu, a Joia não se sentia propriedade de meu pai, mas uma amiga, companheira de caçadas, sobretudo uma amiga. De forma igual, tenho certeza de que meu pai nunca se sentiu dono dela. O amor entre eles certamente estava bem além do que significa a palavra “dono”, que implica um senhorio, nada tendo a ver com as pessoas ou animais que tanto amamos.

Etimologicamente, dono vem do latim “dominus”, senhor, proprietário, líder. Hummm, líder até que é legal, pois quando a Cristina Hauser pensava que estava no comando de seu cão, ele é que a guiava, exercendo o papel de líder, puxando-a fortemente por onde desejava. Mas essa liderança está mais para uma cumplicidade cheia de amor partilhado. Contudo dizemos “meu filho”, “meu marido”, “meu cão”, tudo bem. É mais por uma questão de referência. Podemos dizer “meu filho é mais velho do que o seu”, mas este pronome possessivo não significa posse, propriedade no sentido que questiono aqui.

Não, não somos donos de nada. Nem de nossos filhos, nem de nossos cães, gatos, cavalos, elefantes, seja lá do que for, até mesmo das coisas como casas, carros, dinheiro. Estamos usando estes bens temporariamente, pois desde sempre soubemos que um dia deixaremos tudo para trás. É difícil viver sem amarras, com total liberdade, isso praticamente não existe porque nossa natureza humana tem necessidade de possuir, de ter, de ser proprietário. Quanto às pessoas e criaturas que amamos, existem laços entre nós (nós nos dois sentidos), alguns mais apertados, outros mais leves, assim como a trela que usamos em nosso cão para passear. Mas bem diferente de serem algemas de ferro, são com certeza, laços de amor e de ternura.  


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quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Santa Mentira


            A casa de Dona Ana era pequena, menor ainda era o quarto, minúsculo. Cabia quase que só a cama onde Dona Ana choramingava de medo da morte, esparramando sobre o velho colchão de capim um corpo cansado e doente. Fingindo conformidade, dizia para minha mãe com voz entrecortada de dor e soluços, é a hora, quando chega a hora, não tem jeito...fazer o quê? A gente sabe que é a vontade de Deus, mas a gente tem medo, queria ficar mais... só mais um pouco, mas quando Deus quer ... E passava as mãos pelo rosto banhado de lágrimas. Minha mãe, tão jovem ainda, animou Dona Ana, ora, isso não quer dizer que a senhora vai morrer, está apenas doente. Dona Ana apertava a boca, desconfortável e triste, sem conseguir dizer palavra. Estava lúcida, sabia que ia morrer. Eu, menina, sem ainda saber que a morte existia, fixei meu olhar perdido na janela pequeniníssima. As árvores muito verdes, num gesto de amizade e delicadeza, ofereciam seus galhos cobertos de folhas para bem perto da janela, de modo que Dona Ana tivesse o consolo de sua companhia. Era como quase estar no céu.
Intimamente, senti um pouco de inveja de Dona Ana porque queria que de minha cama também eu pudesse admirar as árvores que representavam para mim um universo mágico. Quando eu estava em cima do abacateiro de meu quintal, era certo que existia um outro mundo, além daquele de lá de baixo. Cada minúsculo serzinho que eu podia ver passeando para lá e para cá nos galhos tinha uma história que eu inventava, isto é, não sei se inventava ou se era verdade, o que sei é que as árvores eram cheias de vida. Quando cresci, esqueci as histórias, mas não perdi o encanto pelos galhos, pelas folhas e pela majestade misteriosa das árvores. Bom, voltando ao episódio de D. Ana, naquele pequeno momento de minha vida, ter os galhos das árvores entrando em minha janela era tudo o que eu almejava, e eu era feliz.
Não sei o que minha mãe pensava, nem se a doença de Dona Ana era de morte, mas captei nos dizeres e tons da mãe que eu bem conhecia, um quê de certa santa mentira, uma bondade desajeitada, uma imensa vontade de ajudar Dona Ana. Isso de minha mãe eu entendi mais tarde quando eu própria tentava consolar meu pai que já sabia que ia morrer e tinha medo, pai, calma, não é nada, o médico falou que o senhor vai sarar.
Todos já se foram. Dona Ana, meu pai, minha mãe, só que esta, sem medo algum. E eu aqui, ainda queria aquela árvore verde na minha janela, mas tal como Dona Ana, também tenho muito medo.    
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sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Querida Prima Hepburn

Querida Prima Hepburn
Misa Ferreira

Quem já não teve uma prima a quem admirasse profundamente? Eu tive e passei a chamá-la de Prima Hepburn porque embora não se parecessem tanto assim, ela me fazia lembrar a famosa atriz, pela elegância e beleza que exalava em todos os momentos de sua vida. Não havia um instante sequer em que a Prima Hepburn não estivesse absolutamente encantadora, fosse num baile, ou preparando um almoço ou simplesmente caminhando. Há mulheres assim, que não se esforçam para serem bonitas, no entanto são e pronto. É algo de dentro, uma elegância interior, um charme nato. Parecem viver sempre envoltas em brumas. Não, não é para qualquer uma.

Ela era um pouco mais velha que nós e viajava para ficar conosco nas férias quando então podia aprender a costurar com minha mãe, que sendo exímia costureira, não teve aluna mais brilhante e eminentemente criativa que minha prima. De qualquer pedaço de pano ela conseguia fazer uma blusa incrível ou um tubinho superelegante à La Hepburn, que faria Madame Chanel babar de inveja! Melhor, se minha prima fosse contemporânea de Madame Chanel, elas teriam formado uma dupla invencível.

A Prima Hepburn sempre conseguia dar um toque diferente nas roupas mais comuns, como por exemplo, no uniforme de colégio. Quem ousaria mexer num uniforme tão tradicional? Pois ela subia um pouco mais a gola ou franzia o ombro e o resultado era surpreendente! Anos mais tarde, quando esperava seu primeiro filho, ela apareceu na cidade usando um vestido de grávida que era um luxo! Imagine, ela conseguiu juntar o azul e o verde numa roupa, coisa impensável para a época! Ninguém jamais havia tentado essa façanha, azul podia ser combinado com outras cores, mas com verde, jamais! E ficou divino!

Quando ela fez quinze anos, houve uma grande festa em sua casa. Não fomos porque ainda éramos meninas e desajeitadas para bailes, mas fiz questão de ver as fotos deslumbrantes, entre elas a foto do vestido que ela mesma fez e usou. Em certo momento da festa, seu pai apareceu no melhor estilo vindo de dentro da casa, trazendo os sapatos de saltinhos da filha em cima de uma almofada de veludo vermelho. Não sei se por conta de minha alma encantada ou de meus sonhadores olhos de menina, mas poderia jurar que os sapatos brilhavam como se fossem incrustados de diamantes. O baile foi um acontecimento e tanto na cidade e a Prima Hepburn se comportou como uma insigne princesa fazendo sua aparição oficial à sociedade local. Aposto que também Lady Di ficaria meio sem graça se visse minha prima.

Também estávamos presentes no seu casamento, é claro. Eu não podia mais conter minha ansiedade até que ela surgiu e foi caminhando para a igreja dando o braço ao pai. Ela confeccionou seu próprio vestido de noiva e ele era simplesmente inédito. Prima Hepburn escolheu um adorno para a cabeça parecido com aqueles que as espanholas usam ou usavam, com o véu rendado caído assim de cima como uma cachoeira branca e brilhante. Fiquei fascinada!

E assim a querida Prima Hepburn seguiu pela vida, sempre elegante com os filhos e agora com os netos. Sua pose de princesa amadureceu e ela está mais charmosa do que nunca. Mas trago nas minhas mais caras recordações de infância a imagem de minha prima a cantar enquanto fazia os moldes. Depois ela levantava cada peça e balançava a cabeça satisfeita com sua própria obra de arte, o que fazia com que seus longos cabelos negros dançassem de um lado para o outro. Eu, então, com meus cabelos curtinhos de menina, suspirava profundamente e ficava espreitando meio de longe para poder admirá-la à vontade. Não, decididamente não havia prima mais linda e elegante no mundo!

Saramago disse certa vez: “Que há de mais maravilhoso que o amor e a admiração de uma criança por uma pessoa adulta?” É por aí, como dizem.    

 
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