João Barone, autor e membro da banda Os Paralamas do Sucesso, é destaque da nova edição da Revista Conexão Literatura – Setembro/nº 111

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quarta-feira, 19 de abril de 2017

Louro: 100 Anos de Curtição

É sabido que os papagaios são adoráveis aves inteligentes, sociáveis, marotos, canhotos que seguram o alimento com o pé esquerdo, às vezes bocejam, manifestam ciúmes, repetem e imitam o que as pessoas falam. Tudo bem, mas igual ao Louro, nunca vai existir. Que assim o dissesse a Samaria, empregada antiquíssima de certa família no início do século XX. Ela servia a família na fazenda com uma fidelidade inigualável e amor genuíno, aliás, o mesmo amor com que criou seus próprios filhos ali mesmo, todo mundo junto debaixo do mesmo teto. Foi a Samaria que apareceu um dia com um papagainho tão pequeno que mais parecia um filhote de passarinho. Começou a chamá-lo de Louro e o nome ficou. Assim me contaram.
Pois não é que o Louro reinou por cem anos naquela família? Ele não só alegrava as crianças e os adultos como interferia nos assuntos familiares, religiosos, questões financeiras, conflitos da alcova, enfim, em tudo. O papagaio era o centro das atenções. Fazia ar de debochado, dedurava o garoto que mentia para a mãe, caía duro para trás de tanto rir de alguém, caçoava das visitas e até do padre. O mais incrível é que rezava o terço com a Samaria. Por Deus, o papagaio parecia gente.
Dizem que os papagaios vivem no máximo oitenta anos. O Louro viveu cem, também não era para menos, um papagaio tão especial como ele tinha que ter sido diferente dos outros. Considerava a Samaria sua melhor amiga, e ela assim também o considerava. Conversava com ele como se ele entendesse tudo, e quem poderia dizer que não? Se ela dizia: xiii Louro, vai chover, ele respondia: vai sim, vai sim. Quando eu disse que ele rezava o terço com a Samaria, talvez tenha exagerado um pouco, mas é certo que depois da Ave Maria, o Louro respondia: Santa Maria, amém. Isto ele falava sim senhor! Assim ouvi dizer.
O pessoal da casa se divertia em provocar o Louro na hora das refeições, principalmente as crianças. O papagaio ficava dentro de um viveiro imenso dentro da imensa cozinha que era de chão batido caiado de branquinho. E lá o Louro também provocava a família. Se a matriarca dizia para um filho: fica quieto e come menino, o Louro dizia lá do canto dele: come menino, come menino. E alguém retrucava: Cala boca, Louro! Todo mundo ria e o papagaio ria pra valer. Pra resumir, o Louro era a alegria da casa. Acompanhou gerações em cem anos de pura curtição. Viu gente nascer e morrer, e lá estava ele vivendo mais do que todo mundo.
Quando morreu certo tio da família, sujeito resmungão e desafeto do Louro, tiveram que levar o viveiro e papagaio pra longe da casa porque o Louro não parava de gritar: vai tarde, boboca, vai tarde, boboca ... Como é que pode?
Mas o vexame maior foi com o padre que ia sempre visitar a família. Ninguém sabe de onde o Louro tirou essa ideia, mas ficava gritando: “o padre quer casar, a benção seu padre! O padre quer casar, a benção seu padre!, O padre quer casar, a benção seu padre! ...” e tudo isso sem parar, repetindo, repetindo até que a Samaria tirava o Louro do viveiro, e falava: “cala a boca, papagaio sem-vergonha, descarado, debochado, seu excomungado! Eu ainda te torço o pescoço, é hoje!”. O padre fazia que não ouvia, e os velhos da casa falavam alto para encobrir a fala do Louro.     
Contavam que o patriarca tivera um filho fora de seu casamento e que havia tentado esconder o fato da mulher. Só que quando ela soube do acontecido, pôs o velho por diante para fazer o que era certo. Neste meio tempo, o sujeito morreu tragicamente, e o patriarca, consumido pela culpa, mandou celebrar centenas de missas por alma dele. Sem que ninguém ousasse falar o nome do filho morto, o Louro passou a gritar “Cupertino, Cupertino”! várias vezes por dia. E quando o patriarca chegava à cozinha, o papagaio mexia com ele, dizendo: “papai, papai”. O velho não teve dúvidas, passou a acreditar piamente que o papagaio era uma encarnação do filho e passava as tardes ao lado do Louro, desculpando-se por não tê-lo reconhecido. A Samaria mexia os paus no fogão à lenha e balançava a cabeça como quem diz: “Seu Tonico endoidou”.
Seu Tonico morreu, a Samaria morreu, meus pais morreram e o Louro completou cem anos. Depois da morte da Samaria, dizem que o Louro manteve a cabeça baixa e os olhos fechados, sem comer nem beber água. Guardou três dias de luto. Foi melhorando devagar até que ficou feliz novamente. O patriarca só faltou levar o Louro pro quarto, o que a matriarca não aceitou de jeito nenhum. Assim me contaram.  

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