João Barone, autor e membro da banda Os Paralamas do Sucesso, é destaque da nova edição da Revista Conexão Literatura – Setembro/nº 111

  Querido(a) leitor(a)! Nossa nova edição está novamente megaespecial e destaca João Barone, baterista da banda Os Paralamas do Sucesso. Bar...

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Mudando o Foco

Em razão da grande enchente que ocorreu aqui em Itajubá há 17 anos, tivemos que levar meus pais para um apartamento enquanto a velha casa sofria uma grande reforma. Logo após a mudança, minha mãe começou a apresentar um comportamento estranho, e um exame apontou um provável início de demência. Infelizmente só mais tarde aprendemos que mudanças de casas e lugares podem ser desastrosas para pessoas idosas. Foi o início de uma fase cruel que tivemos que enfrentar. A demência nunca regrediu, sequer estacionou, só avançou cada vez mais. Talvez tivesse acontecido de qualquer maneira, quero dizer, se não fosse a mudança, algum outro fator desencadearia a demência, como uma cirurgia, um susto que fosse, no caso, a própria enchente que foi um acontecimento tão devastador. Fomos aprendendo com o que tínhamos pela frente, no dia a dia. Foi um duro caminho de pedras, mas até entre as pedras nascem flores, assim, não posso dizer que viveria tudo de novo, que choraria todas as lágrimas que tive que chorar, mas digo com certeza que foi um período profuso de aprendizado de amor e de ternura, pois não é no sofrimento que tiramos as mais belas lições?
            Bem, não existem manuais para a vida, apenas dicas de quem já passou pelo problema, e há coisas realmente importantes que podem ser aprendidas como não colocar o idoso debaixo de uma ducha forte, pois para quem está fragilizado com a idade e doença, qualquer água é uma cachoeira assustadora. Falar alto quando a pessoa está de costas também pode ser ameaçador. Enfim, realmente não há regras a seguir porque a vida nunca é exata. Estou falando isso porque num prazo curto de tempo vi dois exemplos de mudança de idosos que foram bem sucedidos.
            O primeiro caso foi de uma senhora, que já demente e muito triste, foi levada para o campo, para a casa da filha. Lá, entre as árvores, flores e chilreados de pássaros, a senhora acalmou-se, descobriu que podia sorrir novamente. Reconheceu os filhos, leu partes do livro da filha, lembrou-se de detalhes, ou seja, a mudança foi altamente positiva, talvez pela mágica da natureza que remexe com nossas mais longínquas e preciosas lembranças, trazendo à tona uma imaculada alegria infantil, como o ruído da chuva no telhado e vidraças ou o raio do sol entrando por alguma fresta da janela. 
            O segundo caso, mais estranho, foi de outra senhora, abatida pela morte do marido já há um ano. Não era demente, apenas já um pouco confusa pela idade e aparentemente refém de uma irremediável tristeza pela perda do companheiro. Cada acontecimento como Natal, Ano Novo ou aniversário ocasionava um transtorno em todo o sistema físico da senhora. A pressão subia, a respiração alterava, os sinais vitais ficavam comprometidos, e assim os médicos eram chamados, os procedimentos adotados até que tudo se estabilizasse. Todos os cuidados eram tomados de tal forma que ela não fosse afastada de sua velha casa centenária, com as lembranças do companheiro, da vida feliz de que estava ou esteve presente em cada canto. A televisão ficava sempre sintonizada no canal religioso que ela mais gostava. Mas com a última crise não foi possível mantê-la na casa. Foi trazida para o hospital e diretamente para a UTI.
            De forma surpreendente, ela abriu os olhos e se deparou com um universo totalmente diferente do seu costumeiro dia a dia. Tudo era estranho, as roupas das pessoas, as máscaras. Ela compreendeu que estava num hospital. Já se sentindo melhor com as providências médicas tomadas, passou a observar com interesse cada detalhe daquele estranho mundo. Comentou sobre a maneira como a limpeza do quarto era efetuada, conversou com as enfermeiras, contou algumas de suas histórias. Aos poucos seu semblante ficou sereno e ela se sentiu distante da casa povoada de lembranças. Seu bem estar era tão visível na companhia daquelas pessoas que até temeram levá-la de volta para casa.
            Isso também me fez lembrar de minha mãe certa vez passando a noite no Pronto Atendimento. Enquanto pingávamos de sono ao clarear o dia, ela já desperta, admirava o pátio interior do hospital repleto de plantas. E dizia: olha as plantas, que beleza!
            Tanto em um caso como em outro houve uma mudança de foco. A primeira senhora melhorou visivelmente com a benfazeja natureza, com a presença dos filhos que iam visitá-la como se fossem crianças em férias no campo. A segunda, afastada do ambiente que lhe angustiava pelas lembranças da perda do companheiro, sentiu-se talvez alegre como quando ia ao hospital para ter seus bebês.
            Cada caso é um caso, cada pessoa é única, e definitivamente não há regras para a vida. Contudo há uma regra infalível: quando pesarem na alma os supostos erros ao lidar com os pais idosos e dementes, há que se perdoar porque somos feitos muito mais de erros do que de acertos. Quase sempre erramos mais do que acertamos. Que bom que Deus sempre vê o coração.
            De outra forma, também podemos transpor para nossa própria vida a mudança de foco. Às vezes nos encontramos tão mergulhados nos problemas e nas preocupações que deixamos nos contaminar pelo medo e angústia. É preciso tentar mudar o foco, isto é, focar outra situação, assistir a um filme, viajar ali mesmo para o campo, conversar com uma pessoa serena, brecar as palavras e pensamentos amargos. Não vamos mudar a situação, mas certamente uma porta dentro de nós vai se abrir por onde a esperança poderá nos visitar.

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Um comentário:

  1. Oi Misa! É um prazer a leitura das suas crônicas (acompanho aqui pela revista). Um abraço, Sandra Abrano

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