Crimes podiam passar em branco, naquela região pantanosa, eles eram cometidos de tempos em tempos, mas nunca foram elucidados. O que acontecia, como e por que, isso era tarefa para adivinhos e senhores das trevas.
Naquela manhã de brumas e terrores da imaginação, Leon se encontrava a quinhentos metros do portão principal, carregando com os braços, atrás da nuca, sua espingarda de dois canos para caçar patos. Na propriedade, o silêncio era completo. Leon era um rapaz loiro forte e socado, tinha maxilares reforçados, ombros maciços e membros avantajados. Seu tórax amplo o tornava capaz de corridas de vinte quilômetros, sem grande esforço. Em uma luta, o previsível era a vitória para Leon. Sua família tinha imenso orgulho dele. Consideravam-no apto para qualquer prova esportiva ou mesmo, alguma disputa física, por uma questão de ataque de assaltantes às terras da família ou de defesa de sua escolhida.
O problema era que faziam dois anos que o rapaz deixara de se interessar por alguma moça. Lord Denison, pai de Leon, aventara a hipótese de o filho ter caído em depressão. Também, com aquela gente mesquinha de Audrey, nem ele queria desposar alguma mulher. Nem em sonhos encontraria uma alma gêmea naquela charneca, o que acontecia era que todas as mulheres estavam com ambições que envolviam seu dinheiro e suas posses.
Leon começou a caminhar, aproximando-se da entrada do castelo, um passeio de cascalho e areia. Gostava desse tipo de solo, seus passos eram reconfortantes quando ele os ouvia à medida que avançava. Chegando ao portão aberto, duas portas foram abertas na fachada do castelo. Eram homens armados. O rapaz queria conversar, mas a fisionomia dos homens, mais os fuzis de combate que traziam atravessados à frente dos corpos, deixaram-no de mau humor.
— O que quer aqui, rapazinho? — perguntou o homem, uma cabeça mais alta do que todos.
— Sabe — disse, sem concentrar-se de todo no altão, e sim, mantendo os dois em sua vista —, acho que estou perdido. Tão perdido quanto um peixe fora-d’água. E vocês me parecem com ursos, querendo apanhar uma carpa. Não que eu me preocupe com isso, mas vocês estão em vantagem. Trazem duas, duas verdadeiras matadoras de gente. É, estou falando do poder de fogo que vocês têm. Dois fuzis automáticos que eu nem conheço a marca, mas são fuzis, o que é bem mais do que o que eu trago. Minha espingarda tem pouco alcance, trava com facilidade, usa munição de chumbo, ao invés de projéteis de aço, como os que vocês usam. E, também acho que este castelo não deve ser tão acolhedor quanto suas torres davam a impressão, enquanto eu vinha andando por essa trilha de horríveis seixos e areia. Por Deus, vai entrar areia nos meus sapatos novos...
— Tudo bem! Diga o que quer e dê o fora daqui. Chega de papo furado.
Leon era mais encorpado que os dois homens, que deviam ser os seguranças do castelo. Sabia que, se quisesse acertá-los usando a munição de chumbo de cada cano para cada homem, matá-los-ia. Olhou-os com desprezo e os humilhou com a expressão morta de seu rosto, os olhos semicerrados, a boca meio curvada para baixo e seu aspecto desleixado.
— Por que não me mostram a casa? — o rapaz perguntou, a entonação de sua voz sugerindo que, ou os homens o deixavam entrar, ou haveria encrenca. O homem mais baixo e franzino passou os dedos pelo nariz, riu e apontou o fuzil para Leon. Disparou uma salva de três tiros, que teriam esfacelado a ponta do pé do visitante, se ele tivesse continuado a demonstrar desleixo, ao invés de pular para trás.
— Quer ver a casa, ele disse — o baixote riu, olhando para o altão. Este disparou duas rajadas, que acertaram o chão pelos lados do rapaz.
— Quer... ver... a casa... — o homem alto disse, gargalhando. — Ele quer vê-la, Berkley, ele quer!
Os dois aproximaram-se de Leon, os fuzis apontados para ele. O baixote agarrou seu braço esquerdo e o mais alto, o braço direito de Leon. Ele poderia desarmá-los a hora que quisesse, desprendendo-se dos braços deles e os golpeando, a fim de tirar suas armas.
— Venha conosco, temos algo para lhe mostrar — o grandalhão falou.
— Ótimo — retrucou Leon.
Entraram na sala principal do castelo, um salão, para falar a verdade. Móveis de madeira negra e estantes com livros compunham a mobília.
— Sente-se aí! — disse o baixote, soltando o braço do jovem. — E não saia, até voltarmos.
— Do contrário, o quê?
— Verá o que lhe acontecerá, então!
Os dois homens deveriam ter achado que Leon tinha pouca importância, porque saíram batendo os pés com displicência, calçados com botas pesadas. O rapaz levantou-se e foi ver que tipo de livros havia no salão. Qualquer um poderia ficar desconfiado das intenções de quem morava no castelo, mas Leon achou aqueles livros muito interessantes. No mesmo momento em que começava a folhear um deles, os dois homens voltaram.
— Não mexa no que não lhe diz respeito!
Leon ergueu a espingarda que trazia. Os dois homens abriram a boca, não estavam preparados para um conflito mortal. Achavam que haviam assustado o rapaz e ele não usaria uma arma contra os dois.
— Algum problema... — Leon colocou o dedo indicador no gatilho e apontou a arma para o baixote, que se pusera de quatro e tentava mirar nos pés do jovem. O rapaz atirou com um dos canos da espingarda, esfacelando a mão colocada no gatilho do fuzil. O altão reagiu o mais rápido que pôde, apontando seu fuzil militar para Leon e disparando. Errou. Leon virou sua espingarda para o outro e atirou, acertando-o no braço que sustentava o fuzil. O grandalhão berrou de dor e largou o fuzil. Caiu no chão, a seguir, segurando o braço ferido com a outra mão.
O rapaz correu castelo adentro, deixando os atacantes. Encontrou um senhor idoso e perguntou-lhe onde estava o telefone. Ele abriu a boca e disse:
— Por aqui, por aqui!
Chegaram a uma saleta repleta de peles e cabeças de animais. Haviam sido empalhados e compunham uma verdadeira cena de horror, nas paredes, chão e teto do aposento. Leon apanhou o telefone sem fio e digitou o número do hospital. Chamou uma ambulância e desligou o aparelho.
— Quem é o senhor?
— Sou o dono do castelo. Por que atirou em meus guarda-costas?
Leon sabia que haveria de contar a verdade, uma hora ou outra. Falou:
— Queriam me matar com seus fuzis de guerra. Eu estava apenas dando uma olhadinha nos livros do salão.
— Tenho uma câmera de segurança, instalada no salão do castelo. Ela dirá a verdade.
Quatro horas se passaram e a polícia chegou. Examinou tudo, o térreo, as torres e os aposentos de visitas e do homem idoso. Fergusson, o chefe de polícia, algemou o rapaz e levaram-no à delegacia.
— O que estava fazendo no castelo, senhor Leon?
— Estava querendo visitá-lo.
— Armado com uma caçadeira calibre doze?
— É minha arma de caça.
Fergusson coçou a cabeça. Leon era o mais novo membro dos Greenwald, e isso significava encrenca para ele. Se o prendesse, um juiz o soltaria, e se o soltasse, teria Armand nos seus calcanhares. Mesmo sendo um policial tarimbado, Fergusson tinha medo de que fosse alvo de um atentado, mais cedo ou mais tarde.
— Certo, Leon. A câmera de vigilância do castelo mostrou o que iria acontecer a você. Um tiro de fuzil o deixaria inválido ou se acabando em uma poça de sangue. Vá para casa. Pensarei no assunto.
Eram duas horas da madrugada, quando Fergusson foi vítima de um assalto à delegacia. Estava falando com Armand pelo telefone, quando a porta do distrito policial foi atravessada por um caminhão tanque, que destruiu os poucos móveis que existiam na casa. O chefe de polícia disparou, mas os para brisas do caminhão eram blindados. A porta se abriu e um cano de metralhadora despejou por cima dela uma rajada ininterrupta de projéteis. Em cinco minutos, a arma havia feito um grande estrago. O caminhão deu marcha à ré e saiu pela rodovia que levava a população da Inglaterra à cidadezinha de Audrey.
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— O que acha, pai?
— O mesmo que você, Leon. O velho Armand soube que você havia sido libertado e foi atrás do Fergusson.
— Temos que avisar as autoridades...
— Já devem saber. Armand compra todos com o dinheiro sujo do tráfico de heroína, você e eu sabemos. Mas o que me intriga, Leon, é como você foi parar nos portões de entrada do castelo de Saint-Joseph, depois que eu avisei a você que não se aproximasse da propriedade.
— Eu queria ver...
— Ver o quê? Ver a produção de heroína? Está louco, Leon? Você quase matou os dois guarda-costas do Armand. Um deles saiu hoje do coma. Quer que nos eliminem? Esta gangue é do crime organizado! Vamos ser mortos, como quase o foi o Fergusson...
— E se agirmos antes?
— Com que armas você pensa em lutar, filho?
— Conheço um armeiro, em Londres. Teremos armas à vontade. Vou para lá, agora mesmo — Lord Denison apertou a mão de Leon e disse:
— Volte são e salvo. Leve o caminhão que tenho, para entregas de madeira.
Leon subiu no caminhão e falou:
— Ninguém vai nos matar, pai.
— Assim espero.
Cinco horas depois, doze homens armados com fuzis e granadas devastaram a casa de Lord Denison. Não houve sobreviventes, entre sua família. A mãe, muito idosa, os irmãos e irmãs, a irmã menor de Leon, os empregados... a casa ardia em chamas, quando o rapaz voltou de Londres.
Ficou ao lado do carro, olhando para o incêndio, e nada lhe passava pela cabeça, a não ser invadir o castelo de Saint-Joseph e destruir cada pedra, cada livro maldito de satanismo e barbarismo e cada pessoa que estivesse lá.
Preparou-se.
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Na noite de São Bartolomeu, logo após os bombeiros apagarem o fogo e Leon ter enterrado os restos mortais dos parentes, ele dirigiu o caminhão para a região do pântano e atravessou os portões fechados do castelo dos malfeitores. O caminhão aguentou o impacto, mas não parou. Continuou em desabalada carreira, até atingir a parede de pedra da frente do castelo. Esmagou um segurança, que começou a disparar com seu fuzil-metralhadora contra o caminhão no momento em que viu a silhueta do veículo atravessando os portões, a cinquenta metros de distância do castelo.
O caminhão destruiu a mobília e as estantes de livros. Armado com uma escopeta, granadas de mão e um fuzil automático, Leon saltou do caminhão. Uma velha, a esposa de Armand, surgiu caminhando com o auxílio de uma bengala e Leon disparou contra ela. Com o pescoço estraçalhado, caiu segurando uma granada, que rolou pelo chão. O loiro se jogou para dentro do caminhão e a explosão arrancou a porta do veículo, sem atingir Leon.
Pulando para fora do caminhão, ele empunhou a escopeta de vinte tiros e foi direto para o aposento ao lado do salão. Era um corredor, com várias salas laterais. Em uma delas, um homem saiu de trás de um sofá e disparou uma pistola até esgotar a munição. O tiro de Leon lançou-o contra o sofá, de onde foi jogado para o chão, deixando uma mancha de sangue no encosto.
Leon arrombou porta após porta, liquidando cerca de trinta integrantes da quadrilha. Em uma das salas, um sargento trocou tiros, ele, portando uma metralhadora, e o loiro, dando um tiro por vez e se escondendo por trás do batente da porta.
— Que se dane! — gritou o rapaz. — Vou trucidar você!
Leon jogou uma das granadas de fragmentação que trazia no cinturão e, com a explosão, veio o berro do sargento. Foi desse modo, sala após sala, salão após salão, cozinha após cozinha, que o loiro liquidou cem traficantes ou mais. Quando achou o laboratório de produção de heroína, deixou sete granadas sobre cilindros de vinte metros cúbicos de oxigênio, dispostos na parede do laboratório.
A explosão causada pelas granadas, ativadas por outra que Leon deixou rolar pelo chão até encostar nos cilindros, quase apanhou o rapaz loiro. Ele escapou com um braço queimado, mas conseguiu chegar aos portões da propriedade do castelo. Explosões sucediam-se nos subterrâneos, onde havia grande quantidade de produtos químicos utilizados para a produção da droga.
A polícia, que contava com dez viaturas, todas fora da delegacia arruinada, chegou. Leon contou tudo o que havia feito, nos mínimos detalhes. Os bombeiros chegaram em meia hora e, quando as chamas foram dominadas, foi possível ver o que havia sido feito da quadrilha que agia na cidade de Audrey.
Encontraram na torre principal do castelo um computador que dava acesso a informações extensas e preciosas. Havia o endereço de outros laboratórios de produção de heroína, refino de cocaína e quantidades absurdas, em galpões, de metanfetamina e LSD-25 e LSD-75. Fizeram-se prisões em massa. Quem resistia ao encarceramento era morto. A polícia manteve as execuções em sigilo e destruiu todas as propriedades dos traficantes com explosivos e, nos centros urbanos, à força de martelo e picareta.
— Estamos orgulhosos de si, Leon. Sabemos que é o único de sua família, portanto, o Estado gostaria de fazer uma pequena doação a você.
O novo chefe de polícia de Audrey era um homem digno. Entregou a Leon uma valise contendo cem mil libras esterlinas e um cheque de um milhão de dólares.
Aquela manhã era brumosa como todas, mas o rapaz sentia-se livre para recomeçar uma nova família. Seus sentimentos para com uma certa jovem foram despertados e ele planejou fazer uma visita a ela, assim que adquirisse uma casa confortável. Ele pediu carona a um policial para ir com segurança ao banco. Na viagem, observou com prazer a rotina que começava, no centro de Audrey.
Nada mais será como antes, pensou o loiro. Nunca mais.
Parabéns! Ficção profética.
ResponderExcluirE verdade, se e que ja nao estamos vivendo essa profecia...
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