Sete considerações sobre a obra poético-genealógica de Pedro Pérez
Por Daniel Zanella
1. Em Vida da razão, o filósofo espanhol George Santayana vaticina: “Os que são incapazes de recordar o passado são condenados a repeti-lo”. Em tempos onde é preciso provar que maçãs existem e que chamar Jesus de Genésio é apenas expressão popular, A memória é um cavalo selvagem, de Pedro Pérez, nos apresenta uma descida singular e poética a um passado que não apenas quer ser recordado, como também analisado, verificado, reconhecido e não idealizado: a literatura como única manifestação terapêutica possível, um divã de parágrafos onde o circum-navegador nos orienta a uma ilha de estranhas atrações. E o que é escrever, afinal, senão uma forma de nos despertar da ilha, de recuperar um passado continuamente vívido num mar caudaloso, o sono da razão de Goya produzindo monstros?
2. “Os biógrafos, esses seres absurdos, são violadores de intimidades, reveladores de pequenas frestas ocultas dos dias de alguém normalmente já morto. Os biógrafos são essencialmente perigosos quando trabalham, suam diante de fatos empoeirados, alegram-se ao descobrir segredos que o biografado não gostaria jamais que se tornassem coisas públicas, ficam insones diante de pegadas imaginárias e lidam com a lógica assustadora da construção de um indivíduo” (PÉREZ, 2020, p. 204). Não interessa a Pedro Pérez a suposta matemática dos fatos, as veias abertas das grandes notícias objetivadas. É o pequeno, é o mínimo. Diante de um mundo que acelera o indivíduo em prol de estabilidades que não se sustentam nem até a página 2, defender minuciosamente o passado em quase 300 páginas é uma forma de protesto, de oferecer um outro tipo de velocímetro. Bartleby da memória, Perez defende a subjetividade como quem luta dentro de um castelo prestes a ser tomado pelas tropas inimigas — e as memórias ali, prontas para entrar em combate e nos recordar que ter vivido é a única morte que podemos presenciar.
3. A tessitura do passado nunca se encerra e, no território literário, exige um pacto entre autor e leitor. Ao buscar entender o campo do pacto autobiográfico, Phillipe Lejeune pretende evidenciar como a proposta pode ser uma via de mão dupla, com características internas próprias e recepções específicas. É justamente neste terreno do pacto autobiográfico e de elementos de semelhança e identificação que a memória se alimenta e a obra de Pedro Pérez mais se solidifica. Wolfgang Iser parte na direção do texto ficcional ser uma realidade que não somente deve ser identificável como realidade social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional. “Estas realidades por certo diversas não são ficções, nem tampouco se transformam em tais pelo fato de entrarem na apresentação de textos ficcionais” (ISER, 2013, p. 32). E como isso se aproxima de A memória é um cavalo selvagem? Acompanhamos a jornada de Pérez pelas entranhas de seu passado como se aprendêssemos a vivê-lo juntamente, o Eu que é um Outro. Leitores convencidos a jogar o jogo, criamos uma ficção somente nossa e somos conduzidos a um tempo anterior que pode também ser o nosso, não o passado conveniente-clichê das memórias do que não foi vivido. Pérez quer ensinar o seu passado como um passado de todo mundo — característica comum entre as grandes obras literárias: “Amar é um tanto constrangedor” (PÉREZ, 2020, p. 130).
4. Convém observar aquilo que Paula Sibilia chama de acervo de significações: “A experiência de si como um eu se deve, portanto, à condição de narrador do sujeito: alguém que é capaz de organizar sua experiência na primeira pessoa do singular. Mas este não se expressa unívoca e linearmente através de suas palavras, traduzindo em texto alguma entidade que precederia o relato e seria mais real do que a mera narração. Em vez disso, a subjetividade se constitui na vertigem desse córrego discursivo, é nele que o eu de fato se realiza” (SIBILIA, 2008, p. 31). É bem isso: a vertigem de um córrego discursivo. Em cada página de A memória é um cavalo selvagem somos apresentados a um catálogo de belezas, de sustos, de ligações únicas e universais de palavras: “a infância já contém todas as maldades” (PÉREZ, 2020, p. 99), “Eu continuo sofrendo, nada mais do que isso” (PÉREZ, 2020, p. 65) e “sou um ser da chuva, um batráquio tranquilo em seu ambiente” (PÉREZ, 2020, p. 121). São pequenos retratos de um percurso interior repleto de mentiras plenas, de cores explodindo no olhar do leitor, o rio de Heráclito banhando-nos nessa vertigem também chamada mundo contemporâneo.
5. Em diversos momentos, Pedro Pérez reitera o caráter de verdade da mentira de sua narrativa. Se também jogarmos nesse tabuleiro de fingir, podemos encontrar uma estratégia de aproximação, um contrato de leitura mais afetivo do que reiterativo. Sem a fábula, sem o devaneio, sem editar o passado, como é possível conviver com nossas falhas? Como sobreviver a um passado de ausências, más escolhas, indigências emocionais? Neste passado de leão feito de cordeiros assimilados, Pérez nos propõe uma recoleção de amores, uma experencialidade por meio de uma palavra conectada na outra com precisão. Se do breu foi feito a luz, da linguagem se fará o fim.
6. Como em todo escritor, a vontade de escrever de Pérez denota a existência de uma pulsão pública de contar e de falhar. Lejeune assevera que um autor não exatamente uma pessoa: “É uma pessoa que escreve e publica. Inscrita, a um tempo, no texto e no extratexto, ele é a linha de contato entre eles (LEJEUNE, 2008. p. 17). Leitor de um livro em progressão, leitor de nós mesmos, somos impelidos a um interior de dores, de sofrimentos, de escuridões mediadas pela beleza de contar de um narrador localizado em um tempo somente dele. Possivelmente, não exista melhor forma de sofrer.
7. Ensaísta ou poeta ou filósofo ou geógrafo de apegos ou estrategista de corações. O narrador de A memória é um cavalo selvagem nos puxa pela mão e nos reconecta: “Todas as coisas flutuam sobre a Terra, e considero arrogante todo aquele que explica essa flutuação com argumentos científicos. Aprecio as informações dos artistas, que não explicam nada. Talvez sejam mais leves, hesitem, oscilem entre vontades igualmente potentes e que não levam a um mesmo lugar. Um cientista é pesado e tem pouco pudor, quer exterminar a ilusão como um policial que mata em nome da lei” (p. 16). E o que é um livro senão uma troca silenciosa de afetos entre autores e leitores?
BIBLIOGRAFIA
ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2013.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. Belo Horizonte: Editora UFMP, 2008.
PÉREZ, Pedro. A memória é um cavalo selvagem. Guaratinguetá: Editora Penalux, 2020.
SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
Daniel Zanella é jornalista, cronista e editor responsável pelo jornal literário RelevO.
Contato: contato@jornalrelevo.com
4. Convém observar aquilo que Paula Sibilia chama de acervo de significações: “A experiência de si como um eu se deve, portanto, à condição de narrador do sujeito: alguém que é capaz de organizar sua experiência na primeira pessoa do singular. Mas este não se expressa unívoca e linearmente através de suas palavras, traduzindo em texto alguma entidade que precederia o relato e seria mais real do que a mera narração. Em vez disso, a subjetividade se constitui na vertigem desse córrego discursivo, é nele que o eu de fato se realiza” (SIBILIA, 2008, p. 31). É bem isso: a vertigem de um córrego discursivo. Em cada página de A memória é um cavalo selvagem somos apresentados a um catálogo de belezas, de sustos, de ligações únicas e universais de palavras: “a infância já contém todas as maldades” (PÉREZ, 2020, p. 99), “Eu continuo sofrendo, nada mais do que isso” (PÉREZ, 2020, p. 65) e “sou um ser da chuva, um batráquio tranquilo em seu ambiente” (PÉREZ, 2020, p. 121). São pequenos retratos de um percurso interior repleto de mentiras plenas, de cores explodindo no olhar do leitor, o rio de Heráclito banhando-nos nessa vertigem também chamada mundo contemporâneo.
5. Em diversos momentos, Pedro Pérez reitera o caráter de verdade da mentira de sua narrativa. Se também jogarmos nesse tabuleiro de fingir, podemos encontrar uma estratégia de aproximação, um contrato de leitura mais afetivo do que reiterativo. Sem a fábula, sem o devaneio, sem editar o passado, como é possível conviver com nossas falhas? Como sobreviver a um passado de ausências, más escolhas, indigências emocionais? Neste passado de leão feito de cordeiros assimilados, Pérez nos propõe uma recoleção de amores, uma experencialidade por meio de uma palavra conectada na outra com precisão. Se do breu foi feito a luz, da linguagem se fará o fim.
6. Como em todo escritor, a vontade de escrever de Pérez denota a existência de uma pulsão pública de contar e de falhar. Lejeune assevera que um autor não exatamente uma pessoa: “É uma pessoa que escreve e publica. Inscrita, a um tempo, no texto e no extratexto, ele é a linha de contato entre eles (LEJEUNE, 2008. p. 17). Leitor de um livro em progressão, leitor de nós mesmos, somos impelidos a um interior de dores, de sofrimentos, de escuridões mediadas pela beleza de contar de um narrador localizado em um tempo somente dele. Possivelmente, não exista melhor forma de sofrer.
7. Ensaísta ou poeta ou filósofo ou geógrafo de apegos ou estrategista de corações. O narrador de A memória é um cavalo selvagem nos puxa pela mão e nos reconecta: “Todas as coisas flutuam sobre a Terra, e considero arrogante todo aquele que explica essa flutuação com argumentos científicos. Aprecio as informações dos artistas, que não explicam nada. Talvez sejam mais leves, hesitem, oscilem entre vontades igualmente potentes e que não levam a um mesmo lugar. Um cientista é pesado e tem pouco pudor, quer exterminar a ilusão como um policial que mata em nome da lei” (p. 16). E o que é um livro senão uma troca silenciosa de afetos entre autores e leitores?
BIBLIOGRAFIA
ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2013.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. Belo Horizonte: Editora UFMP, 2008.
PÉREZ, Pedro. A memória é um cavalo selvagem. Guaratinguetá: Editora Penalux, 2020.
SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
Daniel Zanella é jornalista, cronista e editor responsável pelo jornal literário RelevO.
Contato: contato@jornalrelevo.com
A memória é um cavalo selvagem, romance (Editora Penalux). R$45 (294 p., 16x23).
Autor: Pedro Pérez.
Disponível em:
https://www.editorapenalux.com.br/loja/a-memoria-e-um-cavalo-selvagem
E-mail: vendas@editorapenalux.com.br
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