O Beijo de Darwin, do escritor Alexandre Braoios, foi publicado pela Monomito Editorial em 2018.
A obra tem três pilares de sustentação, tal qual a cidade na qual a trama se desenrola, Trindade do Norte. A tríade não está somente no nome da cidade. Está presente nos três aspectos fundamentais que permeiam toda a trama desenvolvida pelo autor: ciência, política e religião e no trio de personagens: os trigêmeos Diana, Aquiles e Davi.
Diana, uma jovem cientista que assume o protagonismo do livro, está de volta a Trindade do Norte, depois de ter passado um tempo fora. É pela voz da protagonista que vamos conhecer a trama e todos os acontecimentos que tomam os moradores da pacata e tranquila cidade. A escolha da narrativa feita por Diana coloca o leitor em contato mais próximo com os seus dilemas, que surgirão ao longo da história.
Ela havia saído da cidade, mas não imbuída de se construir como indivíduo fora daquele local. Ela saiu de Trindade do Norte, em razão das desavenças que tinha com os pais e, sobretudo, pelo fato de que um de seus irmãos havia sido internado num instituto da cidade. Tudo porque ele era homossexual. Tal qual o irmão, mas por motivo diverso, Diana também poderia ser um alvo de sua família e ir parar no tal instituto.
Ela retorna após receber o aviso de que seu irmão Aquiles está morto. De volta à cidade, ela descobre que há mistérios que rondam a morte do irmão. A causa por trás do falecimento do homem desperta nela uma série de questionamentos sobre assuntos contemporâneos que, nós, na realidade, vemos no noticiário. A arte imita a vida ou a vida imita a arte? Diana tem de enfrentar o conflito de relações com seus pais e se depara com descobertas sobre o funcionamento da cidade que suscitam nela dúvidas em relação a tudo que está sendo feito e até mesmo sobre o modo como ela pensa.
Trindade do Norte exala tranquilidade, mas há notadamente o acobertamento de ações nebulosas e carregadas de obscuridade que pairam sobre os moradores da cidade. A tríade política, ciência e religião dominam tudo.
O livro aborda, por exemplo, o preconceito contra a homossexualidade, manifestado sobre a visão deturpada da possibilidade da chamada cura gay. Ainda levanta questões sobre o poder político centralizado na mão do pai de Diana, que é prefeito da cidade. A religião aparece como outro elemento abordado e que o leitor notará no sobrenatural das ações de Davi (irmão de Diana) ou como dogma para impor comportamentos para os cidadãos. Além disso, o livro trata ainda o preconceito racial, a discriminação social que leva em conta o poder econômico do cidadão e levanta questões sobre manipulação. A política, a religião e a ciência, em Trindade do Norte são utilizadas para controlar a sociedade. Semelhanças com a realidade existem e, para além do entretenimento, a literatura ajuda a refletir sobre nosso tempo.
As questões político-sociais aparecem na obra formando uma camada interessante de reflexão e de debate ao leitor. Negros e pobres são vistos como pessoas menores pelo poder político (representado pelo pai de Diana), tal qual os homossexuais. Exclusão social escancarada ocorre na cidade, mas sempre travestida de melhoria. Veja-se o exemplo da inexistência (ou melhor) do afastamento de mendigos, travestis e prostitutas do convívio social. Eles são afastados da visão de toda gente e isso é vendido como melhoria para a cidade. Limpeza? Como pode uma cidade ser limpa varrendo-se seres humanos?
Decerto, caro leitor, você já deve ter visto ou ter sabido de alguma notícia que dê cabo de ações semelhantes praticadas por governantes da vida real. Preconceito! Não se assuste se encontrar alguma ação ou característica que se assemelhe a personagens políticos ou outros que discursam por aí palavras que parecem cheias de coisas positivas, mas que exortam preconceito (dos mais diversos). Onde ficam negros, pobres e homossexuais? O que é feito com as pessoas que não aceitam os tratamentos que a cidade impõe? Por que algumas pessoas são tidas como mau exemplo?
Quanto à construção de personagens, temos uma protagonista completa. Diana é daquelas personagens cheias de nuances e detalhes que demonstram tanto sua força quanto a sua fragilidade, a inteligência e a falta de percepção em relação a determinados fatos, as certezas e as dúvidas, o amor e os conflitos de relações. Ela move ainda sentimentos controversos no leitor, na medida em que constrói a sua jornada pela história que nos conta.
A trajetória da personagem Diana é intrigante, completa e complexa pela profundidade da personagem. Notamos as mudanças dela ao longo da história e, não só mudanças comportamentais, mas também em relação ao que pensa. Nesse sentido, o autor acerta em cheio ao nos mostrar uma personagem que para além do pensamento que tem pratica o que pensa. Mesmo os outros personagens, os secundários, aparecem ao leitor de modo completo. Personagens fortes marcam histórias de qualidade, como vemos em O Beijo de Darwin.
Como mencionamos a tríade que existe, a sua representação se dá também por edificações e que dão nomes às três partes que dividem a história. O Obelisco é o Instituto de Ciências Comportamentais, o “território da ciência” com suas unidades de tratamento e internação. Acontecimentos que ocorrem por trás das paredes do instituto o leitor vai conhecer na medida em que a história avança e que Diana tenta se aproximar daqueles que controlam tal local. A Cúpula refere-se ao prédio da prefeitura, portanto representação do poder político, do Estado. No caso de Trindade do Norte, a manutenção do poder se perfaz na mão do pai de Diana, prefeito da cidade. A oposição, quando conseguiu alçar o poder, sofreu golpe para que o comando político voltasse às mãos de quem quer o controle total. Poder. A ânsia pelo poder. A Torre é o templo. Alta e suntuosa é a representação da religião. Lá é onde a Bispa Teresa “brinca de ser Deus” manipulando as pessoas por meio da fé. Cada um dos irmãos, aparentemente, também tem aderência a cada um dos pilares de assuntos que são abordados no livro.
O que o autor aborda não é raso, aprofunda-se por meio de seus personagens e dos acontecimentos, dos diálogos e pensamentos, que se mesclam com a realidade vivida pelos moradores de Trindade do Norte. O sobrenatural que se manifesta dá um toque de mistério na trama, a visão deturpada e manipulada de alguns moradores (inclusive apresentando um conformismo crônico) e a visão manipuladora dos pais de Diana e do Dr. Phillip – renomado médico que fica a frente do Instituto, nos propicia a indagação em relação ao modelo político. Podemos filosofar por longo tempo sobre o que lemos.
O Beijo de Darwin é um livro que segura o leitor em suas páginas. A vontade de devorar o livro e concluir a leitura anda lado a lado com a vontade de discutir, debater e de refletir sobre tudo que é falado. A narrativa de Alexandre Braoios mostra-se madura e consistente, com personagens bem construídos, camadas que se sobrepõe sem perder-se do eixo central e tornam a leitura uma intensa viagem.
E que desfecho! Surpreende o leitor pela sua solidez, diante de tudo que a protagonista passa ao longo da trajetória. Impacta, abala, nos faz pensar e surge com naturalidade diante do processo percorrido por Diana.
Quer um livro pra lá de atual? Leia O Beijo de Darwin.
Sobre o autor:
Alexandre Braoios é graduado em Biomedicina e Psicologia. Possui doutorado na área de Microbiologia e atualmente reside em Jataí-GO, onde é docente na Universidade Federal de Jataí. Possui contos publicados em diversas antologias e coletâneas, como Contos de Som e Silêncio, Eu Me Ofereço: Um Tributo a Stephen King, Postumus: Relatos Sombrios, Insanidade e Confinados, dentre outras. Em 2014 foi premiado no concluso da Revista Ler & Cia. das Livrarias Curitiba. Em 2016 publicou seu primeiro romance: Coisas de Menino.
Ficha Técnica:
Título: O Beijo de Darwin
Escritor: Alexandre Braoios
Editora: Monomito Editorial
Edição: 1ª
Número de Páginas: 317
ISBN: 978-85-923508-9-5
Ano: 2018
Assunto: Literatura brasileira
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