Sinopse: O século XXI acentuou a celeridade dos processos globalizantes e a densificação de tecidos urbanos repletos de contrastes. O mundo já não é a preto e branco e o anonimato trouxe consigo a cor sob a forma de diferença, que, enquanto experiência vivida, se tornou comunitariamente possível na cidade. Quebra-se na prática a uni-direccionalidade entre sexo e género ou entre sexo e sexualidade, enfrentando-se esquemas de pensamento enraizados. O paradigma máximo desta autonomia sistémica alcança-se na construção de uma identidade travesti mutante, mutável e instável que acompanha um mundo profusamente povoado por fluxos intensos e interdependências várias. É na sociedade global que as travestis encontram espaço para a vivência transnacional e comunitária das viagens trans. Brasil, europa, cidade, prostituição e migração surgem como fatores chave para a sua disseminação geográfica e identitária. A rua tornou-se a sua nova casa e as outras travestis são agora a sua família.
CITAÇÕES:
1 - Este olhar atento da estrutura sobre os indivíduos, procurando descortinar comportamentos desviantes, reflecte de alguma forma a imagem do panóptico elaborado por Jeremy Bentham em 1791 (Foulcault, 1975), onde através da arquitectura se constatam e reforçam relações assimétricas de poder. Nesta estruturação espacial do poder, em cada cela estaria um indivíduo constantemente vigiado por uma entidade, para ele invisível, a partir de uma torre central, equidistante e situada no mesmo plano relativamente a cada uma dessas celas, dispostas de forma circular relativamente a esse centro vigilante – a torre. A torre simboliza o poder que todos têm consciência que existe. Um poder que actua pela vigilância constante dos desvios à sua norma, sendo essa vigilância impossível de detectar, pois os vigiados, não vislumbram a partir do ponto onde se encontram, quem lá está dentro, ou sequer, se está alguém lá dentro.
2 - Neste palco socialmente sinuoso e tumultuado, renunciarão as travestis a direitos ou procurarão vias alternativas à sua realização? Ou flutuarão – tal como se produzem discursivamente no feminino ou masculino – entre uma e outra situação, consoante a leitura realizada do contexto em que interagem, as aconselhe? Será a estrutura sempre opressora ou permitirá, ainda que involuntariamente, que sujeitos por ela proscritos, encontrem nela, ainda assim, meios para estrategicamente se viabilizarem activamente?
3 - Neste enquadramento a construção de género travesti constitui‑se como um campo social, assim como o é a prostituição que exercem.
Nesse âmbito existem recursos como alojamento na cidade para onde emigram, local na rua onde lhes é permitido prostituir‑se, competição com outros grupos dedicados à prostituição – como a feminina e masculina – competição por especificidades identitárias face a outras figuras como drag‑queens e crossdressers, confronto com os princípios heteronormativos – em suma hierarquização de campos e capitais sociais, neles produzidos, atingidos e valorizados nos seus vários domínios.
4 - Não há espaço nem tempo por si só, existindo autonomamente e desligados do comportamento humano, ao invés, espaço e o tempo são produzidos, são resultado das práticas e comportamentos dos indivíduos. Os movimentos a partir dos quais são produzidos – ao mesmo tempo que a sociedade, ela própria, se produz – podem ser chamados de espacialidades e temporalidades.
5 - Ponteados pela produção de novas espacialidades e temporalidades (Lédrut, 1979, Cf. mobilidades Rémy e Voyé, 1994), que fazem colapsar velhas temporalidades e espacialidades, mais limitadas e centradas sobre si, nada é certo e geracionalmente transmitido como inquestionável.
O self abandona o isolamento recatado das sociedades tradicionais, estáveis e no âmbito do Estado‑Nação moderno – mais ou menos contemporâneo da emergência das grandes urbes industriais – auto questiona‑se, questiona o outro, bem como os constrangimentos de que sente ser alvo. O criticismo e a reflexividade convertem‑se na substância essencial da produção da diferença, assentes também em distintas formas de produzir e gerir espaços e tempos, a que correspondem novas sociabilidades e comportamentos, dos quais resulta a emergência de novos campos sociais (Bourdieu, 2002), como os mercados da diferença, secundados em muitos casos por processos de fetichização da mercadoria.
6 - Consideramos as travestis como inseridas nos novos mercados da diferença, onde competem pelo reconhecimento e legitimação dessa mesma diferença, paralelamente, no âmbito da prostituição, elas próprias se convertem numa mercadoria, de resto como constatamos na frase de um anúncio na internet de Erika Carr.: "Sou o seu sonho de consumo."
SERVIÇO:
Travestis Brasileiras em Portugal: percursos, identidades e ambiguidades
Autor: Francisco J.S.A. Luís
Editora: Chiado
Ano: 2018
Número de páginas: 332
ISBN: 978-989-52-3415-8
Para adquirir o livro, acesse: https://www.chiadobooks.com/livraria/travestis-brasileiras-em-portugal-percursos-identidades-e-ambiguidades
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