Déjà-vu Literário
Rafael Caputo
Olá! Eu me chamo Ellen e sou viciada. Faz onze dias que eu não cheiro. Isso mesmo que você acabou de ouvir, ou melhor, de ler. Não se incomode, também é assim que muitos me conhecem pela primeira vez. Essa sou eu: direta ao ponto. Vinil velho e arranhado que repete a mesma canção, obrigatoriamente, uma vez por semana. Por ironia, essa é a “minha” nota biográfica. Força do hábito.
Vivo um dia de cada vez. Isso, se o arrastar taciturno do coletivo não me impedir. Sua insistência em recolher os moribundos pela berma transforma a já doída trajetória em uma sofrência ainda maior. Quem costuma dizer que o trabalho engrandece o homem desconhece por certo meu ofício, destino do caminho.
Cerca de vinte minutos depois já estamos no centro da cidade. Da janela, vejo uma treze de maio estática. Questiono: pode o chumbo subir aos céus? Transmutar nuvens em borrões? Distorcer o humor, destinar a colheita, destruir, transformar? Quem ousa afirmar que água não tem gosto, não tem cor, não tem cheiro? Quem é que sem saber, sem querer, nem sequer, desfrutará do prazer inerte de estar entregue a grossas gotas geladas? Pingos atraídos por uma força natural incrível, invisível e inquestionável. O que era já não é mais. Estados alterados sem nenhum aviso prévio.
Continuo a refletir. Penso que infringidas foram as leis da física e nenhuma punição está à espera do algoz.
A partir daí, dá-se início a fusão de dois extremos. Aflição, curiosidade e espanto tornam-se ingredientes em banho-maria. Em meio a comportamentos diferentes, percebo que correr é uma unanimidade. Ora, qual é a lâmina capaz de dividir o que jaz vulcanizado? — volto a questionar — qual é a cor do som brilhante reflexo de uma nebulosa fricção aleatória?
Nesse instante, vislumbro um oceano a queda livre. A voz da cidade é abafada e até seu perfume se transforma. Na esquina, sob a ocre luz intermitente, um balé descompassado de metal, borracha e vidro fazem das ruas o palco de um inesperado show à parte. Sem ritmo e sem público. Sem início, meio ou fim. Só lágrimas.
De repente, o abrir de um zíper meu nome sussurra. É o suficiente para trazer-me de volta dentro do tedioso circular. Tudo por conta da desconhecida ao meu lado que pôs a fuçar a bendita bolsa. Um sussurro quase torpe que mais parece um grunhido animal. Já posso imaginar o que vai sair da boca do tal bicho. Só por implicância sai de lá suposto livro, passatempo da estranha para dias como esse.
Em prol de um alento, busco em meus pulsos a fragrância Paper Passion de hoje cedo, meu eau de parfum preferido. Uma busca inútil, pois, nada supera a olência com leve toque de baunilha — meu vício — fruto da degradação de alguns produtos químicos diversos. Estes sim, responsáveis por exalar compostos orgânicos voláteis e únicos, mix de polímeros e aderentes. O resto é obra da mãe natureza, façanha do tempo. Deve ser culpa da amadeirada lignina, também minha preferida. O melhor a fazer é descer.
Ainda faltam duas quadras até o trabalho, que ideia a minha? Agora tenho que nadar nesse oceano lacrimal, esbeirando-se pelas marquises como roedor na calada da noite. Ziguezagueando a desviar de tolos acessórios de função menosprezada.
Impossível não notar, adiante, o galante engravatado ao tablet. Imóvel como o prédio que o cerca. O que será que ele lê? Notícias? A cotação da bolsa? Um romance, talvez? Creio que seja um conto, quem sabe o testemunhar de uma pisciana complexa, interessante, de personalidade forte e marcante, que há onze dias luta contra um desejo incontrolável e poderoso. Talvez ele ainda não saiba, mas por ela tenha se apaixonado. Preso a sua história o pobre infeliz permanece, a lendo e relendo, em busca de uma brecha a adentrar. Sem forças para evitar, sucumbiu ao vício do amor, esse sim ainda mais viciante.
Por alguns segundos, penso em furtá-lo. Levar comigo o tal modal literário. Não por mera curiosidade da leitura, mas por que talvez consiga realmente utilizá-lo para sanar minha abstinência. Será? Acho que estou enlouquecendo. Como poderia tragar tão belo enredo? Não me permito ser uma ladra, não hoje. Preciso me concentrar.
Chego ao destino, adentro ao prédio e logo chamo o elevador. Ele demora mais do que o normal. Quantos virão hoje? Penso eu. Tomara que esse tempo não lhes tire o tesão. Assim ocupo o corpo e distraio principalmente a cabeça. O elevador deve estar defeituoso, demora ainda mais para subir. Uma ânsia como a da suspensão corporal me alcança, sinto-me içada lentamente pelo dorso, o descolar da carne me dá prazer e náusea ao mesmo tempo. Literalmente, já nas alturas, sou cuspida para fora dele tão ofegante como se pelas escadas decidisse vir. Minha visão fica turva, prefiro imaginar que é culpa do ar rarefeito do já conhecido décimo primeiro andar.
Dentro do mil, cento e onze agora me encontro. Os sete pecados do atendimento ao cliente são os únicos que por aqui não passam, todos os outros batem cartão. Estou fraca, preciso cheirar. Perco o controle. Procuro desesperadamente pela droga nas gavetas dos móveis. Não penso em mais nada. Meus movimentos são reflexos involuntários em busca de um tesouro muito bem escondido. Vou do quarto para a sala, da sala para a cozinha, reviro tudo, nada encontro. Como uma barata tonta, chego ao banheiro, minha última esperança. Nada! Só meu eu do passado refletido no espelho: atônito, perplexo, insano. Ele me desafia, me ironiza, me atormenta.
Saio correndo feito louca. Bato a porta. Não espero o elevador, não há tempo. Desço apressada as escadas, só penso em não cair. Em segundos, já estou lá embaixo. Mal consigo respirar.
Atravesso o saguão do edifício. Desperto estranheza de uns e curiosidade de outros. É tarde demais para manter as aparências. Refaço com ímpeto o contrário do caminho. Já na rua, corro a passos largos. Chamo a atenção de muitos. Esbarro nas pessoas, quase caio. Derrubo sem querer o celular de alguém, ou um tablet, talvez o do galante, que ele me perdoe. Sinto-me seguida, já estão atrás de mim. Olho para trás, não consigo discernir o ver do enxergar. Preciso respirar senão vou sucumbir. Entro mais que depressa numa grande loja térrea de esquina. É o fim. Cedo a tentação ali mesmo. Cheiro de uma só vez tudo o que no papiro se encontra. Me rendo como um asmático ao usar sua bombinha. Nem ao menos sei de onde veio a droga que está em minhas mãos. Meus olhos começam a se revirar, os bicos dos seios se enrijecem e já arrepiado meu corpo todo se contrai.
Faço então uma pausa… Longa e contínua…
Por um bom tempo mantenho trancada a respiração com o cadeado do êxtase. Se pudesse, jogava a chave fora. Uma fungada das boas, daquelas que me leva sem paradas até o nirvana, ponto final da estação. Lenta apneia para imortalizar um velho e conhecido amigo: antagônico bálsamo que completa, consome, aprisiona e liberta. O aroma sentido é de madeira de guaiaco, cedro e almíscar com uma combinação de notas campestres sobre uma base de bolor, trazendo à memória um aveludado e empoeirado cheiro de jornal impresso. Nada de mofo, tomilho, sótão, esmalte, cera de chão ou parte debaixo do sofá desta vez.
Sinto ser invisível, sentimento comum para muitos da minha espécie, mas logo percebo que estou de fato é cercada. Ao meu redor, a prima Bete, a madame Bovary, o alquimista, o impostor, o homem duplicado, o pequeno príncipe, o senhor dos anéis e o caçador de pipas; dentre outros improváveis personagens literários. Todos a me observar. Implacáveis, imutáveis, inertes. Todos com a mesma sensação de déjà-vu, por mim também já foram outrora tragados.
A grande loja onde me encontro é na verdade uma livraria. Ao entrar, sem mesmo notar, peguei logo da primeira ilha uma obra em oferta. Seu título pouco importa, menos ainda seu estado de conservação: novo, velho ou usado. Meu segredo fora então revelado: carrego o jugo de uma compulsiva por cafungar livros. Alguns chamam de bibliosmia, tanto faz pra mim. Pelo menos agora posso relaxar.
Amanhã é dia de grupo, lá vou eu começar tudo de novo. Só que desta vez, pelo menos, vou tocar o lado “B” do disco: Oi pessoal! Me chamo Ellen. Eu sou viciada e ontem tive uma recaída. Hoje faz um dia que eu não cheiro.
Vivo um dia de cada vez. Isso, se o arrastar taciturno do coletivo não me impedir. Sua insistência em recolher os moribundos pela berma transforma a já doída trajetória em uma sofrência ainda maior. Quem costuma dizer que o trabalho engrandece o homem desconhece por certo meu ofício, destino do caminho.
Cerca de vinte minutos depois já estamos no centro da cidade. Da janela, vejo uma treze de maio estática. Questiono: pode o chumbo subir aos céus? Transmutar nuvens em borrões? Distorcer o humor, destinar a colheita, destruir, transformar? Quem ousa afirmar que água não tem gosto, não tem cor, não tem cheiro? Quem é que sem saber, sem querer, nem sequer, desfrutará do prazer inerte de estar entregue a grossas gotas geladas? Pingos atraídos por uma força natural incrível, invisível e inquestionável. O que era já não é mais. Estados alterados sem nenhum aviso prévio.
Continuo a refletir. Penso que infringidas foram as leis da física e nenhuma punição está à espera do algoz.
A partir daí, dá-se início a fusão de dois extremos. Aflição, curiosidade e espanto tornam-se ingredientes em banho-maria. Em meio a comportamentos diferentes, percebo que correr é uma unanimidade. Ora, qual é a lâmina capaz de dividir o que jaz vulcanizado? — volto a questionar — qual é a cor do som brilhante reflexo de uma nebulosa fricção aleatória?
Nesse instante, vislumbro um oceano a queda livre. A voz da cidade é abafada e até seu perfume se transforma. Na esquina, sob a ocre luz intermitente, um balé descompassado de metal, borracha e vidro fazem das ruas o palco de um inesperado show à parte. Sem ritmo e sem público. Sem início, meio ou fim. Só lágrimas.
De repente, o abrir de um zíper meu nome sussurra. É o suficiente para trazer-me de volta dentro do tedioso circular. Tudo por conta da desconhecida ao meu lado que pôs a fuçar a bendita bolsa. Um sussurro quase torpe que mais parece um grunhido animal. Já posso imaginar o que vai sair da boca do tal bicho. Só por implicância sai de lá suposto livro, passatempo da estranha para dias como esse.
Em prol de um alento, busco em meus pulsos a fragrância Paper Passion de hoje cedo, meu eau de parfum preferido. Uma busca inútil, pois, nada supera a olência com leve toque de baunilha — meu vício — fruto da degradação de alguns produtos químicos diversos. Estes sim, responsáveis por exalar compostos orgânicos voláteis e únicos, mix de polímeros e aderentes. O resto é obra da mãe natureza, façanha do tempo. Deve ser culpa da amadeirada lignina, também minha preferida. O melhor a fazer é descer.
Ainda faltam duas quadras até o trabalho, que ideia a minha? Agora tenho que nadar nesse oceano lacrimal, esbeirando-se pelas marquises como roedor na calada da noite. Ziguezagueando a desviar de tolos acessórios de função menosprezada.
Impossível não notar, adiante, o galante engravatado ao tablet. Imóvel como o prédio que o cerca. O que será que ele lê? Notícias? A cotação da bolsa? Um romance, talvez? Creio que seja um conto, quem sabe o testemunhar de uma pisciana complexa, interessante, de personalidade forte e marcante, que há onze dias luta contra um desejo incontrolável e poderoso. Talvez ele ainda não saiba, mas por ela tenha se apaixonado. Preso a sua história o pobre infeliz permanece, a lendo e relendo, em busca de uma brecha a adentrar. Sem forças para evitar, sucumbiu ao vício do amor, esse sim ainda mais viciante.
Por alguns segundos, penso em furtá-lo. Levar comigo o tal modal literário. Não por mera curiosidade da leitura, mas por que talvez consiga realmente utilizá-lo para sanar minha abstinência. Será? Acho que estou enlouquecendo. Como poderia tragar tão belo enredo? Não me permito ser uma ladra, não hoje. Preciso me concentrar.
Chego ao destino, adentro ao prédio e logo chamo o elevador. Ele demora mais do que o normal. Quantos virão hoje? Penso eu. Tomara que esse tempo não lhes tire o tesão. Assim ocupo o corpo e distraio principalmente a cabeça. O elevador deve estar defeituoso, demora ainda mais para subir. Uma ânsia como a da suspensão corporal me alcança, sinto-me içada lentamente pelo dorso, o descolar da carne me dá prazer e náusea ao mesmo tempo. Literalmente, já nas alturas, sou cuspida para fora dele tão ofegante como se pelas escadas decidisse vir. Minha visão fica turva, prefiro imaginar que é culpa do ar rarefeito do já conhecido décimo primeiro andar.
Dentro do mil, cento e onze agora me encontro. Os sete pecados do atendimento ao cliente são os únicos que por aqui não passam, todos os outros batem cartão. Estou fraca, preciso cheirar. Perco o controle. Procuro desesperadamente pela droga nas gavetas dos móveis. Não penso em mais nada. Meus movimentos são reflexos involuntários em busca de um tesouro muito bem escondido. Vou do quarto para a sala, da sala para a cozinha, reviro tudo, nada encontro. Como uma barata tonta, chego ao banheiro, minha última esperança. Nada! Só meu eu do passado refletido no espelho: atônito, perplexo, insano. Ele me desafia, me ironiza, me atormenta.
Saio correndo feito louca. Bato a porta. Não espero o elevador, não há tempo. Desço apressada as escadas, só penso em não cair. Em segundos, já estou lá embaixo. Mal consigo respirar.
Atravesso o saguão do edifício. Desperto estranheza de uns e curiosidade de outros. É tarde demais para manter as aparências. Refaço com ímpeto o contrário do caminho. Já na rua, corro a passos largos. Chamo a atenção de muitos. Esbarro nas pessoas, quase caio. Derrubo sem querer o celular de alguém, ou um tablet, talvez o do galante, que ele me perdoe. Sinto-me seguida, já estão atrás de mim. Olho para trás, não consigo discernir o ver do enxergar. Preciso respirar senão vou sucumbir. Entro mais que depressa numa grande loja térrea de esquina. É o fim. Cedo a tentação ali mesmo. Cheiro de uma só vez tudo o que no papiro se encontra. Me rendo como um asmático ao usar sua bombinha. Nem ao menos sei de onde veio a droga que está em minhas mãos. Meus olhos começam a se revirar, os bicos dos seios se enrijecem e já arrepiado meu corpo todo se contrai.
Faço então uma pausa… Longa e contínua…
Por um bom tempo mantenho trancada a respiração com o cadeado do êxtase. Se pudesse, jogava a chave fora. Uma fungada das boas, daquelas que me leva sem paradas até o nirvana, ponto final da estação. Lenta apneia para imortalizar um velho e conhecido amigo: antagônico bálsamo que completa, consome, aprisiona e liberta. O aroma sentido é de madeira de guaiaco, cedro e almíscar com uma combinação de notas campestres sobre uma base de bolor, trazendo à memória um aveludado e empoeirado cheiro de jornal impresso. Nada de mofo, tomilho, sótão, esmalte, cera de chão ou parte debaixo do sofá desta vez.
Sinto ser invisível, sentimento comum para muitos da minha espécie, mas logo percebo que estou de fato é cercada. Ao meu redor, a prima Bete, a madame Bovary, o alquimista, o impostor, o homem duplicado, o pequeno príncipe, o senhor dos anéis e o caçador de pipas; dentre outros improváveis personagens literários. Todos a me observar. Implacáveis, imutáveis, inertes. Todos com a mesma sensação de déjà-vu, por mim também já foram outrora tragados.
A grande loja onde me encontro é na verdade uma livraria. Ao entrar, sem mesmo notar, peguei logo da primeira ilha uma obra em oferta. Seu título pouco importa, menos ainda seu estado de conservação: novo, velho ou usado. Meu segredo fora então revelado: carrego o jugo de uma compulsiva por cafungar livros. Alguns chamam de bibliosmia, tanto faz pra mim. Pelo menos agora posso relaxar.
Amanhã é dia de grupo, lá vou eu começar tudo de novo. Só que desta vez, pelo menos, vou tocar o lado “B” do disco: Oi pessoal! Me chamo Ellen. Eu sou viciada e ontem tive uma recaída. Hoje faz um dia que eu não cheiro.
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- Conto “Déjà-vu Literário” — Rafael Duarte Caputo (Rafael Caputo) — Menção Especial no IX Concurso Internacional de Contos Vicente Cardoso promovido pela Prefeitura de Santa Rosa/RS em Outubro 2019.
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