Deserto da Namíbia à Noite |
“O penhasco erguia-se a duzentos ou trezentos metros, mas Brombeck tinha um ou dois segundos para se decidir. Podia ouvir a horda chegando, os selvagens da tribo vizinha se aproximando. Ignorou os sons e deixou-os, em sua mente, na região obscura do esquecimento. Passando Lucy para o ombro esquerdo, começou a escalar.
“É claro que, se ele fosse apanhado e morto sob tortura, a vida da mulher valeria menos que as coxas de um animal imenso e suculento, mas o fato era que ele gostava da garota. E a adorava, num crescendo, à medida que se conscientizava que chefe Ponrói surgia em sua mente, afirmando que, se ele se revelasse corajoso o suficiente, teria o direito à fêmea, mesmo que fosse bem-sucedido ou fracassasse. Os inimigos dos Luta-Luta eram manipuladores exímios de raízes. As flechas com pontas embebidas em líquido do interior das nozes Tecã eram letais, mas Brombeck tinha poucas opções. Porém, os seus perseguidores, ou eram ruins de mira, ou, o que se revelou correto, estavam batendo em retirada, e, desse modo disparavam a esmo, sem acertar os dois inimigos.
“Ficou claro para o neandertal a razão de tal debandada. Ele nunca havia encontrado aqueles animais frente a frente, mas era claro que tinham assustado seus inimigos. Com asas de vinte metros de envergadura e uma cabeça maciça dotada de uma mandíbula feita para esmagar, cortar e perfurar, com dez fileiras de dentes de trinta centímetros de comprimento, essas criaturas tinham o significado da própria Morte.
“Brombeck deixou-se ficar de rosto voltado para a encosta, evitando ao máximo que seu corpo fosse revelado, à luz do Sol. Ele tinha a pele vermelho-escura, devido ao tempo prolongado em que se deixava ficar ao relento, mas sabia que os olhos dos Dracone captariam qualquer indício de presas que se movessem próximo à base do monte rochoso.
“Um rugido foi ouvido, seguido de outro, enfraquecendo-se com a distância. Quando tudo silenciou, o neandertal virou sua cabeça e constatou que podia descer. Tinha escalado trinta metros! No chão, colocou Lucy de costas na terra, cheirando o chão e semicerrando os olhos, para ver melhor. Estava certo de que estavam a salvo, mas algo lhe dizia para procurar abrigo.
“Com o olfato de um tigre de dentes-de-sabre e a visão apurada de um Dracone, ele estava dotado de características as mais valiosas para a sobrevivência no Mundo de Pedra. Encontrou, a trinta metros de distância, meio escondida por arbustos e árvores coníferas, uma entrada. Soerguendo a companheira por baixo dos braços e das pernas, correu. Nem um pouco cansado seu corpo musculoso ficou, quando chegou à caverna.
“Pensou que se passara algo estranho, ou, no mínimo, incomum, ao ver a profusão de ossos de feras carnívoras e animais de médio e grande porte, empilhados em montes, junto às paredes do salão principal. Apurou a audição aguçada e detectou a presença de uma fonte, jorrando de um lugar próximo. Com cuidado, aproximou-se da entrada da caverna e, sem ver nenhuma fera ou ser humano, voltou.
“Carregou Lucy nos braços por alguns metros além do salão de entrada. Estavam em um corredor baixo e da largura de dois neandertais de grande porte. O corredor deu lugar a uma câmara de cem passos de largura por cento e cinquenta de comprimento e trinta a quarenta de altura. Tochas queimavam em suportes nas paredes.
“Brombeck deixou Lucy pousar no chão. Viu coisas, animais incrustrados nas paredes. Passou a mão por um desses seres e viu que não eram vivos, mas imagens coloridas, que demonstravam grande perícia no desenhista ao mostrar o povo de Brombeck e os diversos animais que viviam no Mundo de Pedra. Mundo de Pedra, a designação perfeita para o lugar onde vivia, isso o neandertal tinha consciência.
“Tudo o que importava era feito de rocha. As pontas das lanças, usadas para caça e defesa, bem como no ataque aos inimigos de Brombeck. Em temporada de ventos violentíssimos, relâmpagos e rajadas de chuva, que encharcavam e até matavam, caso se ficasse muito tempo sob as tempestades. Para isso, cavernas de pedra eram de extrema importância, pois protegiam a tribo de maneira muito eficiente. Mas a pedra tinha sua importância em outro aspecto.
“A mesma raça neandertal, com todas as características físicas, como a testa bem baixa, era encontrada em outros mundos, na Grande Galáxia Leitosa. Na Terra, de duzentos mil anos atrás até vinte mil anos, o homo neandertaliensis viveu e prosperou. Em Arcturus-10, o décimo planeta em matéria de distância a partir da estrela que portava tal nome, neandertais viveram por cem mil anos. E, no Mundo de Pedra, sua existência estava no começo. Quanto duraria? Ninguém poderia prever.
“Brombeck estava ciente da existência de água na câmara, mas, onde estava, isso era difícil de se descobrir. O ser humano, nesse planeta, aprendera cedo a utilizar a pedra para fazer fogo, pelo atrito. O neandertal vira pelo canto dos olhos que existiam montes de palha espalhados pela câmara. Avançou e apanhou um tanto de um monte. Ele trazia consigo em todos os momentos uma lança ou duas pontas de sílex. Procurou nos bolsos e achou-as. Encostando-as à palha, fez baterem uma contra a outra, até que fagulhas surgiram e incendiaram o punhado. Brombeck fez o mesmo com outras aglomerações de palha e o espaço tornou-se iluminado, como se houvessem vários Sóis no interior da caverna. Mas, o estranho foi que ele não aproveitou o fogo dos archotes presos nas paredes para atear fogo à palha.
“Agora, via a origem do som da água jorrando e correndo. No centro da câmara, havia um repuxo-d’água de cinco a dez metros de altura, e um riozinho corria por alguns metros, até sumir pela entrada subterrânea larga do escoadouro.
“Brombeck aproximou-se do riacho, levando Lucy consigo. Tirou sua vestimenta de couro e encharcou-a com água. Passou o tecido pela testa da amiga. Com as mãos em concha, molhou seus lábios e reteve na mente uma imagem saudável da mulher. Mergulhou as mãos, pulsos e braços dela na água refrescante e cristalina. Lucy estremeceu. Abriu os olhos ovalados e sentou-se. Permaneceu em silêncio, olhando para a caverna. Olhou para a abertura no teto em formato de cone e gritou. Brombeck também viu. Um Dracone de pequeno a médio porte descia planando, as mandíbulas abertas prontas para cortar e devorar.
“O neandertal pensou no fogo. Atraíra aquele monstro e atrairia outros. O homem possuía uma faca de pedra, na verdade, um pedaço de rocha lascada que servia para cortar animais caçados pelos homens de sua tribo. Ele cortou um pedaço médio de couro de sua vestimenta, que enrolou na faca, e ateou fogo a ele. Esperou, até o animal pousar. Correu, abanando a faca que queimava, esperando ser o suficiente para que o Dracone sentisse curiosidade e viesse em sua direção. E ele veio.
“Brombeck desviou as presas da criatura para cima com o braço espesso e enterrou a faca ardente em seu tórax. O animal deu um safanão no humano, jogando-o longe. A faca permaneceu no peito do Dracone, queimando. E queimava fundo, o bicho guinchando e se debatendo, sem ter como se desvencilhar da ferramenta de corte. Alçou voo e, quando estava prestes a sair pelo buraco em forma de cone, que era o teto, pairou no ar por alguns momentos e caiu sobre o riacho, sendo arrastado para o escoadouro, para onde foi sugado.
— Como estás? — a moça falou, aproximando-se do companheiro.
— Já estive pior. Vamos sair da caverna, temos de nos juntar a nosso povo.
“A noite estava nem quente, nem fria. Percorreram dez quilômetros, até chegarem ao território dos Luta-Luta. O nome era engraçado, mas muitos haviam morrido por rirem dele. O chefe e feiticeiro da tribo encarregava outros de fazerem a execução, trazendo os desrespeitosos pelos cabelos ou pelo pescoço, através da imensidão do deserto, até a terra dos Luta-Luta.
— Você a trouxe! Minha filha! — disse Ponrói, o chefe dos neandertais. — Conte-me, conte-me os detalhes e faremos uma festa!
“Brombeck queria exagerar nos detalhes, mas ficaria mal para ele se o feiticeiro soubesse por Lucy que ele estivera mentindo. Então, contou o que acontecera, sem enfeitar nada.
— Hmm. Os Ngéla são um povo antipático. Possuímos o conhecimento de como fazer o fogo e eles têm a capacidade de produzir veneno letal para as flechas. Até agora, matamos com flechas acesas... interessante. Se tivéssemos como fabricar veneno... mas, sim, não precisamos fabricar veneno do nada, a peçonha das cobras de sete caudas é mortal!
“Levaram cestos entrançados de casca maleável de árvore Aztech para a caverna onde as serpentes viviam. Ao fim da noite, haviam capturado cinco dúzias de animais, entregando os cestos para o chefe. Uma a uma, as cobras foram seguras pelo feiticeiro, que extraiu durante horas a peçonha de todas as serpentes. Ele ordenou libertarem-nas na caverna de onde as haviam capturado.
— Assim, é bom. Aplaca o Deus-Serpente, que não tolera que as matem. Nem como alimento, deve-se matar uma cobra. Nem para a sobrevivência da tribo.
“Acrescentaram um pouco de barro a cada ponta de flecha, para que o veneno colhido ficasse preso às flechas. Faltava pouco.
--//--
“Com o amanhecer, os Luta-Luta se prepararam. Foram ao território dos Ngéla e ficaram vigiando o seu acampamento de um monte escarpado, onde havia dúzias de entradas para uma caverna. O combate seria até a morte, pois a morte vinha para os que a tratavam com displicência. Essa era uma parte da filosofia neandertal. Em silêncio, desceram o afloramento rochoso e correram, os pés voando por entre as touceiras de urtigas.
“Foram necessárias duas horas para que os Luta-Luta matassem seus inimigos, usando zarabatanas silenciosas, de onde sopravam flechas envenenadas. A morte era rápida e dolorosa. O líder dos Ngéla flechou cinco dos invasores, antes de ser dominado. Ponrói foi breve, mas cheio de sabedoria:
— Dirzium, por que foram vocês que nos atacaram, sempre, no passado? Viu no que isto resultou, uma rixa por causa de uma mulher nossa, uma menina de apenas 68 estações do ano, que você Dirzium, cobiçou e tomou para si, enquanto nossos lutadores dormiam?
— Ponrói, há muitos de nós, no deserto. Se quiser paz, terá de ir para a floresta ou para as montanhas. Você é quem escolhe.
— O deserto é e sempre foi nosso. O deserto é nossa morada. Expulsaremos ou mataremos os Ngéla — o chefe dos Luta-Luta virou-se e disse uma única vez: — Levem-no para longe e o matem. Com o mínimo de dor.
--//--
“A noite foi de festa. Sob a luz da Lua e das constelações, Lucy caminhou com Brombeck até o limite do território dos Luta-Luta e falou, braços dados com o marido recente:
— Teremos quantos filhos? Povoaremos este deserto, e além?
Eram perguntas difíceis de serem respondidas, mas o neandertal pensou por alguns minutos, os olhos perdidos no horizonte.
— Este Mundo de Pedra, uma vez, possuiu vinte bilhões de habitantes. Perdeu=se o significado dessa quantia. Hoje, está vazio. Veja este deserto. Ponrói disse que havia dezessete nações, antes de começarmos a guerrear com os Ngéla — Brombeck virou o rosto para sua amada e falou: — Teremos vinte bilhões de descendentes. Alcançaremos lá, ali e acolá! — o homem apontou para todas as direções e, por fim, para o firmamento.
— Somos parte desse mundo, não podemos sair e abandoná-lo, Brombeck.
— Por quê? Porque não há mais inimigos a enfrentar?
O hominídeo falou, sem rodeios:
— Porque os que vivem nas luzes, lá em cima, são nossos primos e pais. Tios, sogros. Nossos filhos serão privilegiados, por nascerem nessa hora em que atingirmos os fogos do espaço.
— Então, Brombeck, o que você pensa que há no espaço, além de habitantes para guerrear? — o semblante dele acalmou-se. Era dessa forma que Lucy conseguia manter a paz entre os dois.
— Muito mais, Lucy. Há muito mais além de lutar, guerrear e matar. Para isso é que nós e nossos descendentes vivem e viverão, para construir um lar melhor, entre todas as luzes desse espaço sem fim.
Ficaram em silêncio, observando as nuvens iluminadas pela Lua cheia, e ouvindo os sons dos insetos e animais do deserto. Seriam os filhos dos filhos dos filhos de seus bisnetos que atingiriam as estrelas, mas deixaram-se ficar olhando a paisagem, sem se mexerem, o vento quente de Verão os deixando amortecidos.
Tudo corria bem. Tudo rumava para o sucesso de todos.
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