“Faz quantos dias que caminho entre dunas e afloramentos rochosos?” — penso, a ilusão da dúvida me fazendo companhia. — “Sessenta, ou setenta?”
Com
meu bordão de madeira de lei, sustento-me contra o vento, que começa a soprar
forte. A areia me obriga a abaixar a máscara visual de plástico, que veda boa
parte do rosto. À distância, animais se movem. Devo procurar abrigo. O deserto
é uma péssima opção para viajantes desarmados. Pode lhes quebrar a espinha ou
arrebentar-lhes o crânio.
Vejo
um pequeno rochedo, a entrada de uma caverna, a uns mil e quinhentos metros, a
Oeste. Reúno minhas forças e ando a passo acelerado. As criaturas ao Sul estão
no limite de minha visão. Sem sentir medo, galgo uma duna baixa e continuo por
um caminho suave, sem subidas ou descidas. Elas já me viram, as feras. Pesadas
e grandes, são o que aparentam serem. Trotam em minha direção. Sem ter como me
defender, a única chance que possuo é abrigar-me nas grutas.
Passam-se
os minutos. O vento sopra forte, ameaçando tornar-se uma tempestade. Se ela me
apanhar, duvido que terei alguma chance, mas é preciso continuar tentando.
Começo a correr. Isso é desaconselhável, a respiração pesada força as
partículas de areia que entram na máscara não hermética, a penetrarem nos
pulmões.
Não creio que minhas chances sejam boas.
--//--
Na
gruta, um par de olhos espreita por entre rochas. Viram o humano, há cinco
minutos. O quê, ou quem é aquilo que os vê, não faz a mínima diferença. Está
preparado. Conta os segundos. No centésimo, deixa de os contar e senta-se em
seu trono de rocha. Se ele se preocupa com o viajante, não dá mostras disso.
Tira do bolso uma raiz de “minceto” e começa a roê-la, os olhos vermelhos
vigilantes esperando.
De alguma maneira, há um sentido em observar a vida, sem participar dela. A espera pode ser útil ou educativa. O que vem a seguir é uma incógnita... Noum sabe disso. Previu a chegada do estranho. É hora de se retirar. Guarda o bastão de “minceto”, levanta-se e caminha para dentro de uma de suas cavernas. Suas, sim. Por herança, por conquista, pela defesa que armou, caso algum Destaval queira penetrar à força na rocha.
Na
entrada, a pedra está gasta e polida pelo vento. Nos labirintos que levam ao
subterrâneo, a água faz o papel do vento, ao esculpir o seu interior. Do alto
de vinte metros, Noum repara que a cascata que outrora caía em abundância sobre
uma piscina azul-esverdeada diminuiu sua vazão pela metade. Nota que um tronco
de uma árvore-do-subsolo impede a passagem do liquido, na boca de entrada que
abastece os seres-do-deserto, os que têm afinidade distante com Noum ou são
parte direta de sua família.
“O
nômade poderia fazer muito pelo Povo da Caverna”, ele pensa, cogitando que, sem
a ajuda de dois bíceps extras, não conseguirá mover o tronco.
“Se
outra madeira se interpuser naquela passagem da parede do alto salão, será
impossível arrancá-la da passagem. Sim, teria de convocar os membros de todas
as tribos das cavernas para retirar a madeira e desimpedir a água de descer”,
refletiu. Pensa no nômade. Se for de boa índole e educado nas línguas dos Povos
do Sul e do Oeste, deverá ser civilizado. Mas, se vier do Norte ou do Leste,
isso será um problema”.
Com
seus ouvidos apurados, distingue as passadas finais do homem, chegando à
entrada da caverna. O vento troa, mas é impossível dificultar a audição de
Noum. Ele é o chefe de sua família, o que significa que, para conquistar aquele
lugar na hierarquia dos Povos do Sul, possui qualidades excepcionais. A audição
ultrassensível é uma de suas características.
Dirk
é seu nome, um nome como qualquer outro. Nem sobrara homem algum do Norte que
risse dele, nem restara criatura que não ouvisse falar dele. Ele é um Homem, com
particularidades próprias. Poderia sobreviver a, no máximo, três semanas sob o
impacto da areia, em tempestades do deserto em que não se consegue enxergar
mais de dois metros, à frente. Isso é, por si, um feito glorioso. Poderia
plantar qualquer alimento na areia, que nasceriam brotos, e dos brotos, vinha a
comida que qualquer viajante do deserto perdido daria seus dois braços para
obtê-la.
Aprendera
por duas décadas todas as formas de luta, corporal ou armada, enquanto viajava
em uma astronave de guerra de Setis Major, defendendo seu quadrante contra
piratas espaciais e armadas de adversários de Setis. A astronave aguentara
impactos que teriam reduzido a energia térmica qualquer planeta do Sistema e
infligira danos irreparáveis aos inimigos. Por fim, num ato de misericórdia,
desintegrara uma a uma cada ameaça que surgira, vinda da ponte interdimensional
a dois anos-luz de Setis Major Major, o planeta principal do aglomerado de sóis
e planetas, que constituíam uma fonte de riqueza ambicionada por bilhões.
Mas
quem dirigia a astronave-capitânea era inclemente. Aos trinta anos, como era
princípio e praxe, Dirk fora expulso da nave em um escaler para um homem, com
suprimento suficiente para três semanas. Se ele conseguisse sobreviver, teria
conseguido o que poucos o fizeram. E em Sandome, planeta natal de Noum, pousara
e iniciara sua jornada.
As
tribos estavam em guerra. Dirk se oferecera como soldado no território dos
homens e lutara em muitas batalhas. Em nove anos de estadia em Sandome, ele
ganhara uma única cicatriz, no braço esquerdo. Há dias, viajara com uma
caravana militar para as terras ao Oeste, mas criaturas reptilianas não
civilizadas do subsolo do deserto acabaram com todos, exceto ele. E, sem comida
ou água, Dirk acreditara que sua sorte havia mudado. Seria destruído pelo
deserto ou pelos horrores que habitavam as cavernas a meio caminho entre o
Norte e o Oeste?
Penetrou
na gruta. Era baixa a entrada, com duas dúzias de lugares onde um invasor podia
ser morto, vindo do deserto. Vislumbrou uma entrada e ouviu um marulhar de
água.
“Água!”,
pensou, sem acreditar. Adentrou a gruta e viu-se em um local alto. Abaixo, o
abismo o separa da superfície fervilhante de água gelada, que cai de uma
abertura acima de onde ele se encontra.
—
O que queres aqui, soldado? — a voz é profunda e grave, mas sincera e amigável.
Dirk vira seu corpo em direção a um rochedo e espera. Por trás da pedra maciça,
um ser que dá na altura dos joelhos do Homem se revela, rodeando-a. Possui pele
acetinada, cinzenta, e veste um manto fino de aparência desconhecida para Dirk.
—
Agora não sou um soldado, amigo. Sou um sobrevivente do deserto de Sandome.
Teria um pouco de água para saciar minha sede?
—
Alguns tentam tomá-la à força.
—
Não sou este tipo de guerreiro.
—
Hmmm... — resmungou Noum, entrecerrando os olhos. Era óbvio que o humano viera
para fazer outra coisa, que lutar. Sua aparência, percebeu a criaturazinha, era
péssima. — Diga-me o que pensas, eu direi quem és. Diga-me o que pretendes, eu
direi quem não és. Velho ditado terrestre.
—
Conhece a Terra, a Velha Terra?
—
Estive em muitos lares, muitas moradas. Nenhuma se compara ao globo azul e
marrom, o lar dos homens e das feras. Sim, humano, és um ser curioso, que
abandonou ou foi abandonado além da órbita terrestre, para teu azar.
O
Homem esperou, até Noum começar a andar. Acompanhou-o a dois metros de
distância, agora nem tão tenso como antes. Descem uma escadaria que rodeia a
cascata em espiral, até a piscina. A criaturinha estende o braço e um cálice de
metal brota do chão, enchendo-se de água, que flui da piscina até o recipiente,
levitando.
—
Podes tomar a água, se me ajudares em um pequeno problema.
Dirk
acocorou-se na margem de seixos cinzentos e perguntou qual era ele.
—
Já deves ter visto a entrada da água para este salão.
—
Sim.
—
Viste o imenso tronco que bloqueia parte da passagem?
O
Homem respondeu, assentindo:
—
Outros troncos virão.
—
É o que penso, também. A água não mais escoará.
Dirk
afirmou:
—
Com cordas, podemos puxar a madeira, para que caia na piscina. Então, será
possível arrastá-la para aquele poço e deixá-la lá.
—
Minhas forças estão no fim. Falta pouco para eu deixar este mundo. Precisarei
da ajuda de muitos. E da sua.
—
Posso beber, agora?
— Sim.
--//--
De
onde havia entrado no salão, Dirk lançou por várias vezes cordas, para que
ficassem presas em raízes do tronco, mas a tarefa era difícil. Depois da
quinquagésima tentativa, achou outro jeito de chegar até o escoadouro. Levou
algum tempo, mas ele conseguiu produzir compridos e resistentes espigões a
partir de ossos de animais que o Povo de Noum trouxe para o salão.
Com
fibras de cactos, fervidos e amolecidos, Dirk levou seis horas para, com a
ajuda de Noum e alguns outros, fabricar cordas resistentes o bastante para
suportar o seu peso. Um osso resistente serviria de martelo. Foi desse modo,
que ele, a partir da plataforma onde encontrara Noum pela primeira vez, que,
batendo os espigões com o osso contra a parede da caverna, pôde subir até o
escoadouro.
Deu
dez nós resistentes em cada corda de fibra de cacto, amarrando-as em doze
raízes espessas as cordas, deixando a extremidade destas penderem até o solo. Fez
o caminho de volta, pisando nos espigões fincados no paredão, e desceu a
escadaria de pedra.
—
Com a força de cinquenta de vocês, deverá surtir efeito. Noum, vamos puxar as
cordas!
De
início, foi difícil. O tronco tinha se prendido de tal modo na passagem, que
era de se prever que nada conseguiria mover a madeira. Outros do Povo das
Cavernas chegaram, os que as habitavam em um vasto complexo subterrâneo em
continuação às moradias do subsolo de Noum.
Vestiam-se
de modo simples, sem luxo. Dirk experimentou vinho feito de cactos e ervas que
cresciam nas margens e no interior de lagoas, dezenas de metros abaixo da
superfície.
—
Está ótimo, Noum, jamais bebi algo que ao mesmo tempo me deixasse eufórico e
sem os efeitos do álcool terrestre. Nas naves de Setis Major Major, deviam ter
me dado óleo lubrificante para o motor das astronaves. Isso aqui é algo anos-luz
mais avançado que qualquer vinho ou whiskey que eu já tomei na vida. Um brinde
a todos!
Quando
o salão ficou repleto com o Povo do Deserto, e, nos túneis além da área da
piscina as criaturinhas mais fortes arranjaram espaço para puxar as cordas, ouviu-se
um barulho. Foi um “crack”, um ruído de quebrar. Dirk teve receio de que as
raízes se soltassem.
Mas,
ao contrário do que ele acreditava, o tronco começou a sair do escoadouro,
palmo a palmo. Dirk gritou “mais força!”, e isso resultou em um gemido alto,
que das gargantas dos seres das cavernas tornou-se uma última demonstração de
força bruta. O tronco deslizou com facilidade, as irregularidades de sua casca
grossa cedendo, partindo-se. A tora de madeira veio em velocidade e o Homem
gritou:
—
Saiam do salão, do contrário serão esmagados!
Foi
desnecessário o aviso. Todos sabiam do perigo e, em cinco segundos, o espaço ficou
vazio. Dirk permaneceu na saída do salão para os túneis que levavam a outras
cavernas e salões, muitos deles contendo água. Dirk reparou na quantidade
astronômica que Noum possuía do líquido, e comentou, quando tudo acabara e mais
de um terço da quantidade atual de água jorrava para a piscina:
—
Noum, essa água é preciosa. Devem mantê-la em segredo, para que não invadam
este complexo de túneis e cavernas e se apropriem desse tesouro.
—
Sabemos disso. Todo o Povo do Deserto possui tal riqueza, no subsolo. Ninguém
sai para a superfície há anos e anos... O que fará, após essa ajuda que nos
deu? Voltará para o Norte, onde os homens vivem, ou tentará o Sul e o Oeste?
—Voltarei
para o Norte. Pensei em trabalhar para os homens-lagarto, com seu espaçoporto
no extremo Oeste para me levar a outros planetas. Mas preciso voltar para a
Terra. Um globo azul e marrom... — ele riu baixo. Lá, encontrarei a paz.
—
Então, vá em paz! Você aumentou a quantidade de água, aqui nas cavernas.
Aumente seu conhecimento, viaje, faça conhecidos e boas amizades!
Dirk
ajoelhou-se sobre uma perna e deu a Noum uma esfera pequena.
—
Conhece isto?
Noum
abanou a cabeça, sua curiosidade ficando cada vez mais forte, ao reconhecer as
cavernas semi soterradas, o Deserto e as regiões montanhosas do Leste.
—
Onde conseguiu isto?
—
Ganhei de uma amiga querida, no Norte.
—
Deve ser uma amiga especial.
Dirk
sorriu.
—
Tenho de encontrá-la, caso não tenha partido para outro planeta. Fique com o
globo, não me fará falta. Tenho dinheiro para ir até a Terra e voltar, cinco
vezes.
—
Boa sorte, o Deserto o acompanhará!
Dirk
acenou, na abertura de saída do complexo de Noum, e virou-se. Chuva cairia,
seria uma bênção dos Céus para os homens. Para outros, em Sandome, era fonte de
vida, somente.
Noum
permaneceu na saída por uma hora, até a chuva começar a cair. Nessa altura, o
Homem havia desaparecido no horizonte próximo da Grande Duna, que cercava as
várias saídas das cavernas da criaturinha. Esta se transformaria de líder dos Povos
das Cavernas, entre o Norte e o Oeste, para líder dos Povos do Deserto de todo
Sandome.
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