Seu proprietário, Eugênio Lobo, queria mesmo era chamar o estabelecimento de Boutique da Carne, mas como a região era de fato bem carente, acabou descendo um degrau na escada da ostentação — meio que a contragosto, claro — e a nomeou, de modo simplório, como Casa de Carnes. Era mais do que suficiente. Afinal de contas, não era uma casa de carnes qualquer, mas sim a casa do especialista em carnes, o próprio senhor Lobo, vulgo “O Especialista”.
Antes de se aventurar como empreendedor, porém, Eugênio trabalhava como motorista de ônibus. Já tinha perdido as contas de quantas vezes repetira o trajeto da linha FLORESTA-CENTRO. Conhecia o caminho melhor do que ninguém, uma vez que fora nascido e criado no local. Foi assim que economizou para realizar o grande sonho de ter um açougue, ou melhor, uma casa de carnes. Acabou aprendendo a profissão meio que na prática, por uma questão de sobrevivência. Quando viu, já estava desossando bois, aves e porcos; dentre outros animais.
Porém, Eugênio se diferenciava dos demais da sua família, que era de origem simples e humilde. Praticamente, da roça. Ele não! Ele tinha bom gosto. Era exigente. Ansiava por vinhos caros, roupas de grife, tênis de marca e carros da moda. Possuía, seja dita a verdade, um paladar aguçado. Era inteligente e aprendia rápido. Mas humildade e simplicidade, de fato, não eram as suas qualidades. Às vezes, o próprio se sentia como se adotado fosse. Nunca quis carregar o estigma de “bicho do mato” como seus familiares. Na verdade, ele era o único ambicioso naquela família. Ambicioso até demais.
Aquele já era o terceiro açougue da rede na cidade. Sim, Eugênio Lobo, apesar de pouca instrução, tinha tino para os negócios, e desde que largou o volante para se dedicar ao novo ofício, o Especialista não parava de crescer. Tinha virado uma rede de casa de carnes. Como ele mesmo dizia: sua ideia era virar uma franquia, porque não!?
Como não teve muito estudo, assim que sobrou tempo e dinheiro, Eugênio se matriculou em um curso de Gastronomia. Tudo o que sabia sobre cortes e entrecortes tinha aprendido na prática. Agora, por sua vez, queria desbravar novos dons e possibilidades. Sempre tinha sido um amante da boa comida e boa bebida. Só que nunca teve dinheiro suficiente para usufruir desses prazeres. Não até agora.
Na verdade, se Eugênio tivesse nascido em outra família, com certeza, sua profissão também seria outra: bon vivant. Tamanha personalidade fazia de Eugênio uma celebridade daquela região. E como toda celebridade que se preza tem um passatempo, ou uma excentricidade, Eugênio não ficava atrás: também tinha lá sua mania. Praticamente, um vício. Algo que revelarei mais adiante.
Desde quando começou seu curso culinário, passou a reunir alguns amigos e clientes para jantares especiais, a fim de pôr em prática tudo o que aprendia. Todas as quintas, como de costume, muitos se reuniam em sua casa — não a de carnes — para uma experiência gastronômica, sempre nova, surpreendente e extremamente saborosa. Melhor marketing do que esse, impossível. Eu falei que ele tinha tino para os negócios, não falei? Seu sucesso era tanto, que pessoas de outros cantos da cidade vinham comprar com ele. Seu corte preciso e cirúrgico, além da carne macia e suculenta, eram o grande diferencial. O sonho dos clientes era fazer parte do rol exclusivo daqueles que frequentavam todas as quintas a residência do açougueiro metido a cheff de cozinha.
Para comemorar a abertura do açougue ali no bairro, decidiu realizar um grande jantar com muitos dos clientes locais. Era uma forma de agradecer e retribuir pela preferência. Ele mesmo seria o cheff. Cuidaria de tudo, desde o início. A escolha da carne, seu abate, corte e preparo. Tudo ficaria a cargo do egocêntrico e perfeccionista “O Especialista”. Não poderia perder a oportunidade de aumentar ainda mais a fama que já lhe precedia.
Surpreendentemente, poucos dias antes do evento, eis que dois policiais adentraram à famosa Casa de Carnes. Eles estavam investigando o desaparecimento de uma garotinha e sua vovó. A menina tinha sido vista pela última vez usando um moletom vermelho e pegando, justamente, o ônibus que Eugênio dirigia para ir visitar a matriarca. Queriam, portanto, interrogá-lo a respeito do ocorrido. Antes de prestar seu depoimento, porém, Eugênio atendeu a dona Maria, que levara dois quilos de filé mignon. A melhor parte da garota sumida, motivo da visita dos senhores policias ali presentes.
Eugênio se lembrava bem dela. O capuz vermelho da menina lhe trouxe à tona recordações antigas de um assunto mal resolvido. Isso mesmo, eu disse que o Especialista tinha lá sua excentricidade, não disse!? Pois é, os homens da lei nem imaginavam, mas estavam diante de um suspeito acima de qualquer suspeita. Um assassino frio, calculista e com grande tino para os negócios. Esse era o segredo da tamanha suculência e maciez. As carnes do Especialista eram, de fato, únicas e exclusivas. Extremamente bem selecionadas e altamente saborosas. Ainda mais nos jantares promovidos por aquele anfitrião, empreendedor e assassino em série. Sim, porque antes da garota do moletom vermelho, já tinha sido fornecido a seus clientes, assim como servido em seus jantares: algumas partes da avó da dita-cuja, a moça da farmácia, a menina estudante do ensino médio, o loirinho da oficina mecânica e, um dos últimos, o seu Moacir do Sacolão. Por pouco, até seu José não virou carne moída. Ele era um dos clientes mais assíduos do Especialista. Um velho chato e ranzinza que sempre reclamava ou das carnes ou do atendimento. Eugênio o chamava de Zé Panceta, uma alusão à única parte dele que valia a pena. Na verdade, Eugênio já tinha perdido a paciência com aquele velho fazia tempo, ainda mais depois que descobriu — por fofoca dos outros clientes — que ele batia na mulher. Só esperava por uma chance.
Certa noite, perto da hora de fechar, o tal do seu Zé apareceu querendo um quilo de coxão mole. O Especialista já estava fechando as portas, mas ainda assim Eugênio o atendeu. Com segundas intenções, óbvio! Após o velho entrar, seu Lobo baixou as portas de aço e logo pensou: é agora! Passou para o lado de dentro do balcão, pegou sua faca preferida mais-que-afiada e quando estava prestes a fatiar aquela Panceta foi interrompido pelo toque do celular. Era outro cliente. Este, por sua vez, avisando que já estava em frente à sua casa para o jantar. Isso foi numa quinta-feira. Que sorte deu Zé Panceta. Sorte do Panceta e azar do Especialista, que já estava atrasado para mais um de seus compromissos semanais.
Toda essa história começou, justamente, com o sumiço da garota do moletom vermelho. A presença dos policiais, entretanto, não abalou em nada sua frieza. Chegou até a convidá-los para o grande jantar de comemoração. Afinal de contas, era a celebração daquela famosa Casa de Carnes na região. E se eles estavam realmente interessados no paradeiro da garotinha e sua avó, aquela comemoração seria, justamente, o local ideal para estarem. Todas as suas partes seriam servidas lá. Eugênio tinha pensado em tudo, minuciosamente. Como sempre!
De entrada, ofereceria canapés: pequenas torradas com um patê delicioso do fígado da menina. Como acompanhamento: pierógui com molho caseiro de linguiça artesanal e um strogonoff rústico de carne, tudo feito — diga-se de passagem — com os melhores pedaços da vovozinha. Já o prato principal seria o resto da velhota em forma de rosbife. Para completar: o seu famoso molho pardo, apurado, feito à base de sangue e especiarias. O Especialista fazia jus ao nome, não desperdiçava nada.
Irônico e debochado, ainda iria decorar a mesa de jantar com três porquinhos enfileirados. Todos à pururuca. Uma maça na boca de cada um daria o toque final, um típico clássico culinário que serviria também para despistar qualquer convidado mais curioso. Enquanto soprava e soprava os leitões que estavam pelando de quentes, o prazer mórbido e sombrio de Eugênio era admirar a comilança dos ali presentes, que se deliciavam com seus quitutes pra lá de peculiares. Um prazer viciante que nem mesmo ele sabia explicar. Chegava a salivar involuntariamente ao perceber o lamber dos beiços daqueles convidados, que repetiam por duas ou mais vezes.
Tudo seria perfeito e sairia como o planejado se não fosse pela reclamação que Zé Panceta abriu um dia depois que quase virou carne moída. Seu Zé ligou para a vigilância sanitária que visitou a Casa de Carnes na véspera do grande jantar de inauguração. No frigorífico do local, partes e restos tanto da garotinha, sua avó e de duas ou mais pessoas. Foi um escândalo. Saiu em todos os jornais da cidade e chegou a repercutir até em outros países. Se o cheff Eugênio queria fama e status internacional, tinha conseguido. A casa de carnes foi fechada, o local voltou a ser carente de um comércio rico e selecionado e o Especialista veio parar atrás das grades. Divido com ele e mais uns vinte uma cela de poucos metros quadrados. Como sei dessa história? Ele mesmo me contou. Me contou hoje pela manhã depois que um novo preso aqui chegou — um velho chato e ranzinza — condenado por bater em mulher. Pelo que falaram, acho até que agrediu sua própria esposa. Acho que foi isso!
Por ironia do destino, Eugênio Lobo ajuda na cozinha aqui da prisão. Pelo menos a gente sai ganhando com os dotes culinários do ex-empresário e célebre açougueiro. Se é coincidência eu não sei, mas depois que o Cícero, um dos presos lá do bloco três, aparentemente fugiu aqui da cadeia, todo mundo comeu carne por uma semana. Estava uma delícia! Se me importo com o Lobo sendo mau? Eu não! Posso até apostar com você o que vai ter hoje na janta: Panceta.
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