João Barone, autor e membro da banda Os Paralamas do Sucesso, é destaque da nova edição da Revista Conexão Literatura – Setembro/nº 111

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quarta-feira, 10 de novembro de 2021

10 Poemas de Adélia Prado

 

Adélia Prado - Foto divulgação

AMOR VIOLETA

O amor me fere é debaixo do braço,

de um vão entre as costelas.

Atinge meu coração é por esta via inclinada.

Eu ponho o amor no pilão com cinza

e grão de roxo e soco. Macero ele,

faço dele cataplasma

e ponho sobre a ferida.


Adélia Prado

(Do livro Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 83) 


***


AMOR FEINHO

Eu quero amor feinho.

Amor feinho não olha um pro outro.

Uma vez encontrado é igual fé,

não teologa mais.

Duro de forte o amor feinho é magro, doido por sexo

e filhos tem os quantos haja.

Tudo que não fala, faz.

Planta beijo de três cores ao redor da casa

e saudade roxa e branca,

da comum e da dobrada.

Amor feinho é bom porque não fica velho.

Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:

eu sou homem você é mulher.

Amor feinho não tem ilusão,

o que ele tem é esperança:

eu quero um amor feinho.


Adélia Prado

(Do livro Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 97) 


***


COM LICENÇA POÉTICO

Quando nasci um anjo esbelto,

desses que tocam trombeta, anunciou:

vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada.

Aceito os subterfúgios que me cabem,

sem precisar mentir.

Não sou feia que não possa casar,

acho o Rio de Janeiro uma beleza e

ora sim, ora não, creio em parto sem dor.

Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

Inauguro linhagens, fundo reinos

— dor não é amargura.

Minha tristeza não tem pedigree,

já a minha vontade de alegria,

sua raiz vai ao meu mil avô.

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.


Adélia Prado

Do livro Bagagem. São Paulo: Siciliano, 1993. p. 11)


***


ENSINAMENTO

Minha mãe achava estudo

a coisa mais fina do mundo.

Não é.

A coisa mais fina do mundo é o sentimento.

Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,

ela falou comigo:

“Coitado, até essa hora no serviço pesado”.

Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.

Não me falou em amor.

Essa palavra de luxo.


Adélia Prado


***


FRAGMENTO

Bem-aventurado o que pressentiu

quando a manhã começou:

não vai ser diferente da noite.

Prolongados permanecerão o corpo sem pouso,

o pensamento dividido entre deitar-se primeiro

à esquerda ou à direita

e mesmo assim anunciou o paciente ao meio-dia:

algumas horas e já anoitece, o mormaço abranda,

um vento bom entra nessa janela.


Adélia Prado


***


ALFÂNDEGA

O que pude oferecer sem mácula foi

meu choro por beleza ou cansaço,

um dente exraizado,

o preconceito favorável a todas as formas

do barroco na música e o Rio de Janeiro

que visitei uma vez e me deixou suspensa.

‘Não serve’, disseram. E exigiram

a língua estrangeira que não aprendi,

o registro do meu diploma extraviado

no Ministério da Educação, mais taxa sobre vaidade

nas formas aparente, inusitada e capciosa — no que

estavam certos — porém dá-se que inusitados e capciosos

foram seus modos de detectar vaidades.

Todas as vezes que eu pedia desculpas diziam:

‘Faz-se de educado e humilde, por presunção’,

e oneravam os impostos, sendo que o navio partiu

enquanto nos confundíamos.

Quando agarrei meu dente e minha viagem ao Rio,

pronto a chorar de cansaço, consumaram:

‘Fica o bem de raiz pra pagar a fiança’.

Deixei meu dente.

Agora só tenho três reféns sem mácula.


Adélia Prado


***


MOMENTO

Enquanto eu fiquei alegre,

permaneceram um bule azul com um descascado no bico,

uma garrafa de pimenta pelo meio,

um latido e um céu limpidíssimo

com recém-feitas estrelas.

Resistiram nos seu lugares, em seus ofícios,

constituindo o mundo pra mim, anteparo

para o que foi um acometimento:

súbito é bom ter um corpo pra rir

e sacudir a cabeça. A vida é mais tempo

alegre do que triste. Melhor é ser.


Adélia Prado


***


A FORMALÍSTICA

O poeta cerebral tomou café sem açúcar

e foi pro gabinete concentrar-se.

Seu lápis é um bisturi

que ele afia na pedra,

na pedra calcinada das palavras,

imagem que elegeu porque ama a dificuldade,

o efeito respeitoso que produz

seu trato com o dicionário.

Faz três horas que já estuma as musas.

O dia arde. Seu prepúcio coça.


Adélia Prado


***


UM JEITO

Meu amor é assim, sem nenhum pudor.

Quando aperta eu grito da janela

— ouve quem estiver passando —

ô fulano, vem depressa.

Tem urgência, medo de encanto quebrado,

é duro como osso duro.

Ideal eu tenho de amar como quem diz coisas:

quero é dormir com você, alisar seu cabelo,

espremer de suas costas as montanhas pequenininhas

de matéria branca. Por hora dou é grito e susto.

Pouca gente gosta.


Adélia Prado


***


CASAMENTO

Há mulheres que dizem:

Meu marido, se quiser pescar, pesque,

mas que limpe os peixes.

Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,

ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.

É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,

de vez em quando os cotovelos se esbarram,

ele fala coisas como “este foi difícil”

“prateou no ar dando rabanadas”

e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez

atravessa a cozinha como um rio profundo.

Por fim, os peixes na travessa,

vamos dormir.

Coisas prateadas espocam:

somos noivo e noiva.


Adélia Prado


***




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