A capa/arte do livro foi assinada por Victor Gaudie Barros Fleury (TECCER/UEG), o prefácio pelo Professor Dr. Gílson de Lima Garófalo (USP/PUC-SP) e texto da contra capa pela Professora Dra. Marília Silva Vieira (POSLLI/UEG), mostrando que a obra imprime identidade e territorialidade à arte oleira, ao situá-la, com maestria irretocável, como atividade cultural construída de forma coletiva e, por outro lado, propensa à subjetividade de quem a produz. Ao revestir a criação de produtos artesanais com a essência humana, a escrita transcende o modus operandi das olarias, representado pelas matérias-primas da argila, do fogo e da água. Dessa forma, a cultura é vislumbrada, sobretudo, como um modo de vida.
Ao fim, tem-se revelada a verdadeira substância dos saberes e fazeres em questão, aquela que não é apenas produto, mas, antes disso, a trama em que inúmeras gerações tecem suas histórias nas paisagens do Vale do Rio Paranaíba e sob o céu amarelo dos fins de tarde, no cerrado.
O livro propõe uma viagem pela tradição e arte de vidas oleiras do cerrado, ambiente rico em história, com um cenário geográfico marcado por relações de trabalho familiar que radicam o sujeito histórico na cultura oleira. Investigar essa realidade leva ao reconhecimento da criatividade desses trabalhadores na esfera cultural cerradeira, reveladora do talento e da aptidão em transformar o barro em produtos para a construção civil e o uso doméstico. Para atender à temática “vidas oleiras”, sublinhamos que, nos capítulos desta pesquisa, os sujeitos pesquisados e presentes em nossas narrativas também serão chamados de “mestres oleiros”.
Diante dos apontamentos apresentados, podemos pontuar que os saberes e fazeres encontrados nos lugares de vida dos povos tradicionais oleiros possuem valores identitários e podem ser catalogados como importantes recursos à pesquisa geográfica e de áreas afins. Esse discurso permite algumas referências sobre a produção da vida em paisagens de barro que contemplam (ou não) traços e formas ligadas ao modo de vida e à arte, produtos da relação de sujeitos com a natureza.
Não podíamos escrever este trabalho sem incluir, no corpus investigado, as obras de Antónia Fialho Conde (2013), Josefina Pla (2006), José Calado (2013) e Marcos Afonso Zanon (2004). Essas leituras enriquecedoras nos auxiliaram na construção dos caminhos teórico-metodológicos apresentados, além de valorizarem uma cultura única. Propomos reflexões sobre a tradição e a arte da vida nos terreiros das olarias, com o intuito de compreender formas artesanais como parte de um comportamento sociocultural, econômico e organizacional e que utilizam os lugares de extração de argila como espaços produtivos e da vida.
Nesse prisma, os povos tradicionais oleiros sempre procuraram habitar o entorno de lagoas e rios, área com argilas responsáveis pelo fornecimento de matéria-prima transformada em tijolos, telhas e utensílios artesanais (domésticos ou decorativos). Desse modo, a apresentação do livro foi dividida em quatro partes. No primeiro capítulo, há a reflexão sobre olarias e oleiros em paisagens do bioma cerrado; o segundo se dedica às vidas oleiras nas paisagens mineiras do Vale do Rio Paranaíba – uma família, suas memórias e os caminhos que levaram ao Córrego da Lagoa; no terceiro, destacamos as vidas oleiras nas paisagens goianas do referido Vale – caminhos de uma arte e tradição no entorno de lagoas; e, no último, são abordadas as imagens das olarias do Paranaíba.
Para discorrermos sobre povos tradicionais oleiros com arranjos produtivos, modos de vida, formas e arte artesanal, buscamos compreendê-los como sujeitos trabalhadores que historicamente viveram no adro de áreas úmida e implementam estruturas produtivas, práticas socioculturais e um mosaico paisagístico diferente das ações cristalizadas no espaço marcado pelo agronegócio. A região do Vale do Rio Paranaíba possui um patrimônio oleiro relevante, reflexo intertemporal de uma memória coletiva construída em torno de diversos contatos culturais e contextos sociais.
Escrever
sobre as olarias das paisagens mineiras e goianas implica em identificar os
sujeitos oleiros, cujos saberes e experiências levaram à disseminação do nome e
da arte oleira Paranaíba em parte do bioma cerrado. A atividade gestual e
artesanal com os barros dessa paisagem é, por direito próprio, um símbolo da
história e geografia regional que abarca valores vividos por sucessivas
gerações de um ofício com raízes predominantemente populares.
A olaria é uma das expressões
patrimoniais em que não podemos dissociar a dualidade entre os patrimônios
material e imaterial, e sim aliar, de forma sábia, os princípios clássicos da
utilidade e beleza. Devemos reconhecer esse patrimônio enquanto prática
cultural, o que confere, à região do Vale do Rio Paranaíba, um sentido de
identidade com características particulares de criatividade.
No livro, o mestre oleiro é definido
como um artista hábil e de técnicas muito apurada, que dispensava bem o uso de
artefatos modernos e que seguia os modelos transmitidos pelos seus antepassados.
Os artífices do barro do Vale do Rio Paranaíba utilizavam, no século XX, quase que
exclusivamente as mãos criativas, as pipas, as formas de madeira e a própria
experiência adquirida ao longo dos anos para dar, ao barro pó-de-mico, a correta
forma de tijolos, telhas e utensílios domésticos.
Os mestres oleiros souberam ganhar competências diversas e desenvolver os próprios dons e uma cultura repleta de criatividade – aqui, a unidade familiar foi, nas paisagens mineira e goiana do Vale do Paranaíba, a entidade responsável pela transmissão dos segredos do ofício. As paisagens oleiras do Paranaíba condensam em si cristalizações de trabalho social passado e de diferentes momentos históricos que residualmente ainda se configuram no presente para honrar a história e os valores culturais de um povo acostumado à lida diária com o barro.
À luz dessa das entrevistas coletadas descobrimos que, inicialmente, os territórios eram organizados para dar funcionalidade às atividades com o barro, pois os oleiros chegavam aos lugares sem infraestrutura – nesse caso, havia apenas a lagoa rodeada por vegetação nativa ou pastagens. Era necessário construir tudo, a exemplo de residências, estradas, terreiros das olarias, cercado para os animais (piquete) e poços para retirada de água, mas isso demandava tempo, pois era uma fase de execução realizada manualmente.
A designação “terreiro” foi popularmente usada pelos oleiros em todas as olarias do Vale do Rio Paranaíba no século XX e nas primeiras décadas do século XXI, para identificar o espaço de trabalho, produção e até mesmo comercialização. Convém esclarecer que o terreiro era o centro desse sistema produtivo, o principal lugar das relações sociais onde se realizava, a partir do vivido e do modo de produzir e criar, uma arte tradicional específica do pensar, sentir e saber dos mestres oleiros.
Nesse território se encontravam os utensílios para a lida diária com a matéria-prima: a pipa, as formas de modelar tijolos, a rasura para cortar os tijolos na forma (espécie de material cortante de madeira), a banca de madeira, os carrinhos de madeira para transportar o barro e os tijolos, a pá para cavar, as lonas para proteger a produção, a carroça para transportar o barro da lagoa até a pipa, entre outros. Talvez, o maior símbolo das olarias fossem as “pipas”, elemento que se destacava na paisagem.
Outra etapa do processo produtivo, também citadas pelos entrevistados no campo, é a queima dos tijolos, quando o mestre oleiro os inseria em um forno por meio do processo de “caieira”. Depois de prontos, era colocada uma capa com tijolos já queimados por cima dos que deveriam passar pela queima, e as aberturas eram fechadas com barros do próprio lugar. A queima durava praticamente dois dias e era acompanhada de perto pelo oleiro, que só deixava o posto após a conclusão do trabalho.
Durante a queima da caieira, a fumaça saía pelos orifícios que ficavam na capa de tijolos barreados, o que proporcionava ao lugar uma imagem de um grande forno com pequenas “chaminés” e ilustra o trabalho e o viver nas olarias. As “chaminés” das tradicionais caieiras marcavam, nos limites dos terreiros, o cenário de uma carga cultural que rege a euforia de um sistema produtivo artesanal, coletivo e individualizado aos olhos de quem produz.
Assim, podemos afirmar que o mestre oleiro deveria conhecer todas as tarefas exigidas no processo de feitura das peças, sendo responsável pelo transporte em carroças, amassadores de barros, banqueiros, moldadores de tijolos (formas), riçadores e enfornadores. Essas eram as principais atividades desenvolvidas no terreiro, mas existiam outras tarefas secundárias como (des)carregar os caminhões de tijolo, areia, lenha, entre outras. Os proprietários das olarias também assumiam diretamente a comercialização da produção, o acerto do aluguel da área de extração do barro e os pagamentos dos salários que eram realizados semanalmente nesses locais.
No tocante às falas dos entrevistados, podemos afirmar que o vocábulo “olaria” remete a sentimentos que traduzem um modo de ser, uma identidade, uma saudade, elementos estruturantes do sujeito enquanto ser oleiro que se propôs a residir, a produzir artesanalmente e a viajar por diferentes paisagens do cerrado. Essa história e modo de vida, enquanto processo social e cultural, não foi muito preponderante no mundo acadêmico do cerrado brasileiro, mas esperamos que o presente livro possa abrandar essa lacuna.
Essa cultura fez engrandecer o saber-fazer cerradeiro que testemunha a olaria paranaibana. Os oleiros souberam viver as mudanças temporais e territoriais, além de aguardarem e continuarem para alcançar os êxitos de um sentimento e sensibilidade nutridos por força e fé.
Nesses espaços se transmitiu a história das famílias oleiras, territórios que permanecem na memória de quem viveu os finais de tarde de um céu amarelo do cerrado, onde caminhões aportavam em caieiras para serem carregados de tijolos, um trabalho desenvolvido a partir da coletividade que estava nos sentidos do vivido oleiro. A subjetividade, a identidade e o sentimento de pertença são categorias que compõem uma vila oleira ou, simplesmente, as vidas desses sujeitos.
Tencionamos que as fotografias apresentadas neste livro e obtidas durante os trabalhos de campo – conhecidas como “retratos” pelos antigos moradores das regiões oleiras – sejam contributos e portadoras de ideias e expressões dos modos de vida e cotidianos pretéritos e contemporâneos de sujeitos oleiros do Vale do Rio Paranaíba. As fotografias apresentadas neste trabalho são fundamentais para documentar a existência de sujeitos oleiros na paisagem regional, pois registram cotidianos e revelam identidades. Esse olhar transpassa as aparências e busca fazer história com intensidade, por meio da documentação detalhada e reconhecidamente singular que molda, nos quadrantes fotográficos, as particularidades e diferentes lógicas regionais repletas de informações, o que proporciona uma intimidade da parte escrita com o objeto de estudo.
Apesar do intenso trabalho, do tempo empenhado, dos estudos e das leituras realizadas para a construção deste livro sobre as vidas oleiras, lacunas permanecerão. Muitas histórias ficaram ausentes e mestres oleiros importantes não foram citados, mas conseguimos pontuar a sublime olaria paranaibana, ao mostrarmos suas referências e rica identidade histórica e patrimonial. Assim, é com redobrado enlevo e orgulho que deixamos ideias para novos projetos.
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