[...] Viver é muito perigoso…Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo. [...] (Trecho de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa)
Rotulada como obra complexa e de difícil compreensão, o leitor precisa, primeiramente, se desarmar para ler Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Nessa obra, o autor nos apresenta uma Minas Gerais pouco conhecida, e ler esse Sertão é o mesmo que descortinar horizontes sobre nós mesmos e compreender os registros linguísticos presentes na inovadora narrativa literária construída pelo autor. Porém, existe um abismo entre o livro Grande Sertão: Veredas e o público com potencial para se enveredar obra adentro, lendo-a. Ladeada a essa lacuna, acrescenta-se a falta de interesse de boa parte dos brasileiros por leitura de modo geral.
João Guimarães Rosa figura entre os melhores escritores brasileiros e é citado por intelectuais como um dos mestres da Literatura Universal. Mas por que a obra dele fica em stand-by? Seus livros permanecem em bibliotecas particulares e públicas, acumulando poeira, à espera de leitura pelo grande público. Mais grave ainda é que uma parcela significante de brasileiros não sabe quem é João Guimarães Rosa. Muitos desconhecem que ele foi contista, novelista, romancista e diplomata. E mal sabem que ele nasceu em Cordisburgo, MG, em 27 de junho de 1908 e formou-se pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Guimarães Rosa estará sempre em destaque na galeria da Literatura Nacional. O escritor enveredou-se pela Literatura, primeiramente, por meio da revista O Cruzeiro, em 1929, com o conto O mistério de Highmore Hall. Após tornar-se diplomata, foi cônsul em Hamburgo, Alemanha, entre os anos de 1938 a 1942. Em seguida, de volta ao Brasil, exerceu inúmeros cargos públicos. Sagarana, seu primeiro livro, publicado em 1946, figura entre os melhores livros brasileiros. Em 1952, a revista O Cruzeiro registrou uma excursão que Rosa fez em Minas Gerais acompanhando um grupo de boiadeiros por cerca de 240 quilômetros, aproximadamente, guiando, junto deles, a boiada. A ambientação, as fazendas e o convívio com pessoas dos locais por onde ele passou serviram de material de pesquisa para seu livro mais célebre, Grande Sertão: Veredas, publicado em 1956. Sobre o livro, o escritor disse, em um canal de tevê, na Alemanha, em 1962, único registro audiovisual em que explica seu romance, que sua obra tem um fundo telúrico, real [...] passa-se uma história, com transcendência, visando até o metafísico. Seria quase que uma espécie de fausto sertanejo. João Guimarães Rosa ocupou a cadeira nº 2 da Academia Brasileira de Letras. No discurso de recepção de Rosa na renomada instituição, o acadêmico Afonso Arinos de Melo Franco referiu-se a ele como:
[...] Escritor ligado à terra, às limitações temporais e espaciais de uma certa terra brasileira, não sois, no entanto, um escritor regional, ou antes, o vosso regionalismo é uma forma de expressão do espírito universal que anima a vossa obra e, daí, sua repercussão mundial. Sem dúvida exprimis o social – isto é, o local – nos vossos livros e, neste ponto fostes, como nos demais, um descobridor. Manifestastes um aspecto de Minas Gerais que o Brasil não conhecia: a vida heroica; o heroísmo como lei primeira da existência, na guerra e na paz, no ódio ou no amor. [...]Grande Sertão: Veredas, após ser lançado, provocou polêmica entre críticos, produzindo opiniões divergentes, principalmente sobre a linguagem usada pelo autor na obra. Mas, nos anos que se seguiram, o livro tornou-se uma referência nos meios acadêmicos, e hoje está listado como uma das obras brasileiras mais estudadas e interpretadas em teses de mestrado e doutorado. Foi traduzido para alguns países e adaptado para a tevê, transformando-se em uma minissérie exibida pela Rede Globo de Televisão no ano de 1985.
No texto, se faz presente uma aclamada linguagem que — com experimentações linguísticas, como o uso dos arcaísmos, a recriação e o registro de linguagem sertaneja, a invenção de vocábulos, as construções semânticas e sintáticas — conferem encanto e originalidade à obra. Por outro lado, ironicamente, são esses mesmos elementos que criam o abismo entre o público e o livro. Ler e compreender Grande Sertão: Veredas, para quem não tem familiaridade com a escrita rosiana, pode ser, sim, uma difícil tarefa a ser cumprida.
Entre tantos atrativos em Grande Sertão: Veredas, a história de amor entre os protagonistas do romance se destaca. Na saga, Riobaldo, ex-jagunço, na primeira parte da história, relata suas inquietações, mergulha em conflitos internos, discutindo, de forma desordenada, temas universais, como o bem e mal, Deus e o diabo, a vida e a origem do homem. Riobaldo, à sua maneira — personagem psicologicamente bem construído pelo autor — é uma espécie de filósofo de seu tempo que narra sua própria história. A primeira impressão, aos olhos de alguns leitores que adentram as páginas de Grande Sertão: Veredas, é a de que tanto a narrativa quanto o personagem se mostram caóticos e desordenados, mergulhados em questões existenciais e filosóficas. Mas, após percorridas as primeiras dezenas de páginas, o leitor perspicaz vai, aos poucos, se ambientando com o universo original do autor. É preciso encontrar até mesmo uma respiração adequada para prosseguir a leitura, pois o texto tem uma velocidade própria. Como bem fazem os artistas cênicos que encontram uma forma de respirar apropriada para os personagens que interpretam, o leitor de Grande Sertão: Veredas precisa ajustar sua respiração ao ritmo da história, além de se permitir entrar no mundo rosiano.
[...] Tudo turbulindo. Esperei o que vinha dele. De um aceso, de mim eu sabia: o que compunha minha opinião era que eu, às loucas, gostasse de Diadorim, […] no fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de empapar todas as folhagens, e eu ambicionando de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijar, as muitas demais vezes, sempre. [...] Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. [...] (Trechos de Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa)
Como terá desfecho esse amor, se ele irá prosperar e se aprofundar entre os jagunços Diadorim e Riobaldo, somente a leitura do romance poderá revelar. Um bom ponto de partida para ler e compreender a obra é começar pela leitura do livro Para ler Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, de Luiz Carlos de Assis Rocha, lançado recentemente pela Páginas Editora.
Natural de Pitangui, Minas Gerais, Rocha foi professor no Sistema Estadual de Ensino e no curso de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Possui doutorado pela Faculdade de Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, onde defendeu sua tese baseada na linguagem de Guimarães Rosa. Para ler Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, é o resultado de mais dez anos de pesquisa sobre o texto do renomado autor. Paralelamente aos estudos para compor o livro, Luiz Carlos de Assis Rocha desenvolveu outra pesquisa, de forma informal, indagando pessoas que haviam lido ou não Grande Sertão: Veredas. O resultado o surpreendeu. Entre escritores, jornalistas, intelectuais, acadêmicos e pessoas que leem regularmente, a obra rosiana permanece desconhecida ou pouco visitada para leitura. Diante dessa constatação, tornou-se oportuno elaborar uma espécie de manual para facilitar o contato com um dos grandes livros da literatura nacional, bem como sua compreensão. Com maestria, aliada à experiência de professor que acumulou ao longo da vida acadêmica, por meio de seu livro, Rocha apresenta curiosidades que vão despertar o interesse pela obra-prima rosiana e facilitar seu entendimento. Muito mais que uma preparação para ler Guimarães Rosa ou um dicionário das palavras e expressões presentes em Grande Sertão: Veredas, o livro de Luiz Carlos de Assis Rocha é, fundamentalmente, uma explicação sobre uma parte do jeito mineiro de ser e de falar, espalhado por tantos sertões das Gerais. Diagramado por Nelson Flores e ilustrado por Nelson Cruz, Para ler Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa apresenta, de maneira didática, leve e ricamente detalhada, um passo a passo para mergulhar na obra rosiana, como nos exemplos abaixo:
[...] frase desestrut. – frase desestruturada
A verdadeira revolução rosiana se faz no campo da sintaxe. O que torna o texto de Guimarães Rosa inconfundível é a construção da frase, aliada a uma significação especial que é dada às palavras e às orações. Algumas frases são construídas de uma maneira tão diferente do português comum que alguns leitores chegam a dizer que se trata de uma outra língua, de um sistema linguístico diferente do da língua portuguesa. Mas como se trata de um número de frases relativamente reduzido, considerando a extensão de GSV, não se pode dizer que GR tenha criado uma outra língua, ipso facto, com uma sintaxe diferente. [...] Que sirvam de exemplo as passagens abaixo, [...] Que vontade era de pôr meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos dele, ocultando para não ter de tolerar de ver assim o chamado, até que ponto esses olhos, sempre havendo, aquela beleza verde, de me adoecido, tão impossível. (p. 46/40); [...] Só nos olhos das pessoas é que eu procurava o macio interno delas; só nos onde os olhos. (p. 426- 427/307); [...] E uma vela acesa, uma que fosse, ali ao pé, a fim de que o fogo alumiar a primeira indicação para a alma dele… (p. 582/416) [...]
[...] Deus é definitivamente – ‘Deus é eternidade, segurança’
retentiva – ‘faculdade de reter na memória’; dicion.
sufusa – ‘espalha, difunde’; neolog.; verbo sufusar, estrang., latin. suffundo, suffundere.
dos acasos – ‘das dúvidas, das indecisões’
Para trás, não há paz. – ‘as pessoas sofrem ao se lembrarem do passado’; rima; ritmo; erud. [...]
(Trechos de Para ler Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, de Luiz Carlos de Assis Rocha)
Vale destacar que, nas Minas Gerais, o celebrado livro de João Guimarães Rosa também não figura entre os mais lidos pelo público mineiro. Talvez o trabalho de Rocha, posto como uma referência para iniciar a leitura Grande Sertão: Veredas, mude essa estatística. Segundo Rocha, o leitor perceberá, já nas primeiras páginas, o quanto o conteúdo irá prepará-lo para “sanar as dificuldades apresentadas pelo livro relativas aos efeitos de linguagem, aos significados do texto e à compreensão da obra de um modo geral”.
Levantai-vos, digníssimos! Leiam os dois livros citados neste artigo. Como disse bem o autor de Grande Sertão: Veredas, que faleceu relativamente jovem, em 1967, aos 59 anos de idade, o que a vida quer da gente é coragem.
José Roberto Pereira
Escritor /Artes Cênicas
@joseroberttoo
Referências:
Rocha, Luiz Carlos de Assis, Para Ler Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, 1º edição, Belo Horizonte, Páginas Editora, 2021.
Rosa, João Guimarães, Grande Sertão: Veredas, 7ª edição, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1970.
Suplemento Literário de Minas Gerais – Guimarães Rosa 50º Grande Sertão: Veredas, Belo Horizonte, maio de 2006, Edição Especial, Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais.
Sites: http://www.academia.org.br e https://www.portugues.com.br/literatura/frases-aforismos-grande-sertao-veredas.html
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Perfeição! Parabéns José Roberto
ResponderExcluirParabéns José Roberto
ResponderExcluirExcelente artigo!
ResponderExcluirTexto magnífico que desperta a vontade de reler e conhecer melhor Guimarães Rosa. Com uma sinceridade incrível o texto deixou claro os motivos pelos quais muitos leitores têm dificuldade de concluir Grandes Sertões: veredas. Passei por esta situação. E realmente, o que falta é este entendimento da obra.
ResponderExcluirParabéns e obrigada pela oportunidade de entender Grande Sertao: Veredas.