Ana Cristina Braga Martes - foto: Carol Carquejeiro |
Mesclando ficção e realidade, a estreia literária de
Ana Cristina é parcialmente inspirada na vida e na obra da escritora mineira
Maura Lopes Cançado para construir sua própria narrativa ficcional
A editora Confraria do
Vento lança A origem da água,
primeiro romance da socióloga Ana Cristina Braga Martes. O livro é uma "biografia inventada" sobre
Maura Lopes Cançado, abordando questões como loucura e sanidade, maternidade,
trabalho, família, relações amorosas, saúde mental e institucionalização, além
da busca pela liberdade da mulher num Brasil patriarcal com legado escravocrata.
O livro conta a história da protagonista Laura, que se
interna voluntariamente num hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro, aos 25
anos. Com densidade psicológica e uma
narrativa imersiva, a autora discorre sobre as percepções da protagonista
nesse ambiente desde sua chegada: a falta de cores nas paredes e nas roupas, os
silêncios, a maneira como é tratada pelos funcionários. "Passando o guichê e um
longo corredor, no primeiro esbarrão já se percebe: tratar uma pessoa como louca é fechar a boca à sua frente, exercer muda
contenção à sua volta".
De forma poética, concisa e densa, A origem da água, escrito em primeira pessoa, conduz o leitor para o universo da loucura a partir do olhar
e do mundo íntimo da protagonista. Nascida numa fazenda no interior rural do
Brasil, desde a infância Laura começa a conhecer, desvelar e estranhar essa
realidade, em que os homens ditavam as regras, e os papéis sociais,
especialmente os de trabalho e gênero, eram fixos e intransponíveis.
"Obra
ousada no tema, de linguagem refinada e atmosfera ficcional primorosa, o
primeiro romance de Ana Cristina Braga Martes apresenta uma autora que tem
muito a dizer".
Heloisa Jahn
Com uma estrutura circular em que intercala passado e
futuro, Ana Cristina escreve como se tateasse os limites entre a loucura e a
lucidez, focalizando na trajetória de Laura sua paixão pelo pai e pelo sogro, a
expulsão do colégio interno, a aviação como um modo de explorar fronteiras
geográficas e simbólicas, o casamento e a maternidade ainda adolescente, além da
internação e da busca pela autonomia e reconhecimento na capital do país. A jornada
de Laura –tão ousada quanto
arriscada para a época- é
retratada com delicadeza e profundidade numa linguagem aparentemente contida.
Laura ousou participar de um mundo dominado por homens, onde
as mulheres não eram bem-vindas, e dificilmente obtinham reconhecimento no
âmbito profissional, mesmo nos meios mais letrados e intelectualizados por onde
circulava, quando colaborou para um grande jornal após receber um prêmio
literário.
"Como
uma represa que contém uma cachoeira, assim é a escrita de Ana Cristina Braga
Martes, em que a elegância e a discrição não devem enganar o leitor: trata-se
de contenção. O que essa frase oculta - e seu silêncio é eloquente - é de uma
densidade não só reflexiva, mas também, muitas vezes, agressiva. Em "A
origem da água", a personagem Laura, livremente baseada na escritora Maura
Lopes Cançado, expõe os desvãos da loucura, denunciando, ao mesmo tempo, os
desvãos dos tratamentos e das condutas dos supostamente "sãos". Os
limites da linguagem de Martes não bloqueiam, mas, ao contrário, nos fazem
imaginar outros territórios.".
Noemi Jaffe
Na história de Laura há também a descoberta da sexualidade, a busca pela palavra, os limites
impostos dentro do hospital psiquiátrico, e uma observação primorosa sobre as
outras mulheres internadas e as
funcionárias, numa espécie de fluxo incontido que transita entre o
distanciamento e a contemplação, a ousadia e a redenção. Amigas
imaginárias, colegas de hospício, e a denúncia lúcida dos tratamentos abusivos e arbitrários dentro daquele espaço também
fazem parte da construção narrativa.
A loucura de Laura se intensifica e a autora descreve sua
vida interior com maestria e sutileza, atenuando os limites entre ficção e realidade, verdade e ilusão, devaneio,
delírio e sonho, sem perder o fio condutor da narrativa e oferecendo ao leitor
diversas possibilidades e visões de uma mesma personagem.
"Meu intuito é retratar a
loucura indo além do lado depressivo e mórbido dos transtornos mentais, para mostrar
um outro lado, o da criatividade, da pulsão de vida, ousadia e liberdade",
conta Ana Cristina. "Quero fazer com que as pessoas se sensibilizem e se
interessem por este outro lado".
Ana Cristina Braga Martes é socióloga, pesquisadora e ex-professora
da Fundação Getulio Vargas de São Paulo. Nascida em Varginha (MG), mudou-se para
São Carlos (SP) ainda na infância. Estudou Ciências Sociais na UNESP-Araraquara
e fez mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo, tendo feito parte do
seu doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Viveu em Boston
por dois anos, pesquisando a imigração brasileira naquela região. Foi
Pesquisadora Visitante na Universidade de Boston e fez pós-doutorado na
Universidade de Londres (King´s College of London). Publicou e organizou
diversos artigos e livros acadêmicos, entre eles Brasileiros
nos Estados Unidos – um estudo sobre imigrantes em Massachusetts, pela editora Paz e Terra, em
2000; e New Immigrants, New Land – A
study of Brazilians in Massachusetts, pela University Press of Florida, em
2011. Como organizadora publicou Redes e Sociologia
Econômica, pela UFSCAR, em 2009 e Fronteiras
Cruzadas – etnicidade, gênero e redes sociais, pela editora Paz e Terra, em
2003. Tem mais de 30 artigos publicados em periódicos na Argentina, Brasil,
Estados Unidos e França. A origem da água é seu primeiro livro de
ficção.
Confraria do Vento
A Confraria do Vento seria só uma editora, se não fosse antes uma
tarefa: reunir escritores contemporâneos de diversas vertentes em uma mesma
casa. A
editora, localizada no Centro do Rio de Janeiro, tem apoiado inúmeras
iniciativas e eventos culturais, que vão de saraus, simpósios e festivais de
literatura pelo Brasil, além da promoção de intercâmbios e diálogos com grupos
e escritores de todo o mundo. Já publicou livros de autores como
Boaventura Sousa Santos, Carlos Felipe Moisés, Chico César e Hegel, entre
outros. Entre os prêmios recebidos, estão Prêmio Brasília de Literatura e o
Prêmio de Melhor Livro de Poesia do Ano da Biblioteca Nacional para o livro Aquário desenterrado, de Samarone Lima;
Portugal Telecom na categoria contos para o livro Entre moscas, de Everardo Norões; e Prêmio Jabuti na categoria
poesia para Corpo de festim, de
Alexandre Guarnieri. Em 2018, Spoilers, de
Diego Grando, recebeu o Prêmio Açorianos de Literatura. Mais informações em www.confrariadovento.com.
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