João Barone, autor e membro da banda Os Paralamas do Sucesso, é destaque da nova edição da Revista Conexão Literatura – Setembro/nº 111

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segunda-feira, 5 de agosto de 2019

George Orwell: literatura política - por Gian Danton




Até os 30 anos, George Orwell sempre levou consigo a convicção de que nunca seria alguém na vida. Até essa idade, havia sido soldado, mendigo, cozinheiro e professor primário. Quando começou a escrever, seus livros não faziam sucesso – o que o levou a profetizar que nenhum best-seller sairia de sua pena. Viveu na penúria a maior parte da vida. Seu primeiro livro de sucesso, Revolução dos Bichos, foi publicado dois anos antes de sua morte. E sua obra-prima, 1984, só foi publicada depois de sua morte. Contrariando a profecia do próprio autor, os livros de Orwell se tornaram sucessos mundiais e obras como 1984 nos deram uma aterradora antecipação do que seria o mundo se as ideologias totalitárias, como o nazismo e stalinismo tivessem prevalecido.
Eric Arthur Blair (nome verdadeiro de Orwell) nasceu em 25 de junho de 1903, em Bengala, na Índia. Voltando para a Inglaterra, estudou em colégios tão famosos quanto ineficientes, tais como Eton, onde sofria todo tipo de humilhação dos colegas ricos. A infância deixou nele um complexo de feiura de fracasso que marcou toda a sua vida.
Depois do colégio, Orwell alistou-se na Polícia Imperial Indiana. Na Birmânia, para onde foi chamado, ele conheceu o sentimento de culpa que acompanhava os ingleses. Teve, também, duas experiências que o transformariam profundamente.
Na primeira delas, Orwell estava no mercado quando um elefante se perdeu do domador. Desesperado, acabou matando duas pessoas. O animal estava calmo quando o escritor o encontrou. Mas a população não, e exigia a morte do animal. Ele foi obrigado a sacrificar o animal, embora não quisesse fazer isso. Essa foi sua primeira descoberta: o opressor era também oprimido. Os algozes também perdem sua liberdade.
O segundo insight ocorreu durante a execução de um homem. Enquanto caminhava na direção da forca, o prisioneiro birmanês fez um único gesto, que abalou as convicções de Orwell: “Quando vi o prisioneiro ir para o lado a fim de evitar a poça d`água, entendi o mistério, o erro indizível de acabar com uma vida humana em plena força”.
Orwell abandonou a polícia cinco anos depois de ter entrado nela. Ele voltou para a Inglaterra, a fim de despencar no abismo, viver na pele o sofrimento dos oprimidos e explorados.
Decidido, vestiu-se de mendigo e passou três anos como um.
Seu primeiro livro publicado foi justamente um relato romanceado desse período de mendicância: Na pior em Paris e Londres. Foi quando usou pela primeira vez o pseudônimo de George Orwell.
Nesse meio tempo ele trabalhou como professor primário. Seu terceiro livro fala justamente do assunto. A Filha do Reverendo é a história de uma garota oprimida pelo pai, que perde a memória e acaba vagando por Londres como uma mendiga e depois torna-se professora.
Orweel ainda publicou outros livros, como Dias na Birmânia e Keep the Aspidistra Flying (publicado na Brasil com o título absurdo de Depois de 1984), mas os seus livros dessa fase que mais se destacam são duas reportagens: Lutando na Espanha e A Caminho de Wigan.
A Caminho de Wigan fala sobre os trabalhadores das minas de carvão do sul da Inglaterra. Orwell já começa desmoronando as regras do jornalista: o início é a descrição do hotel em que ele ficara hospedado durante a coleta de informações. Ele gasta todo o primeiro capítulo nisso e se mostra um mestre das descrições. Toda a atmosfera de nojo e feiura são brilhantemente descritos.
Ao invés de ficar no escritório tomando declarações de pessoas “autorizadas”, ou coletando estatísticas, ele se arrasta pelos túneis das minas de carvão, come a comida insossa dos carvoeiros, dorme na cama cheia de pulgas...
Lutando na Guerra Civil é um relato da experiência de Orwell na guerra civil espanhola. Ele batalhou ao lado dos anarquistas e trotkistas. Isso levou muitos de seus biógrafos a considerarem-no anarquista. Embora nunca tenha se declarado como tal, poucas pessoas neste século lutaram tão ferrenhamente contra o autoritarismo.
É na Espanha que Orwell começa a ter contato com o lado negro do socialismo. Em pleno combate contra os fascistas de Franco, os stalinistas se voltaram contra os exércitos revolucionários. Orwell foi atingido por uma bala e teve de escapar secretamente do país em decorrência da perseguição stalinista. Essa experiência iria ser marcante para a formação de 1984, seu principal livro.
A idéia para Revolução dos Bichos veio quando o autor viu um rapazinho chicoteando um cavalo. Fazendo correspondência entre a dominação entre as classes e a que ocorre entre homens e animais, Orwell criou a mais famosa fábula política da atualidade.
Apesar da idéia original e do texto conciso, em que cada palavra parece ter sido escolhida para causar o máximo de impacto, os originais foram recusados sistematicamente pelos editores. Um deles alegou que livros sobre animais não vendiam. Eles devem ter arrancado os cabelos quando Revolução dos Bichos se tornou um best-seller. Orwell nem teve tempo de comemorar: sua mulher morreu cinco meses antes do lançamento.
1984 foi escrito em uma cama de hospital, em 1948. O autor sofria de uma tuberculose pulmonar que o mataria um ano depois. Nele, o globo é dominado por três grandes potências que controlam não só os indivíduos, mas também seus pensamentos e desejos.
A visão política desenvolvida por Orwell nesse último livro é ímpar. O sexo, por exemplo, é sublimado por marchas, minutos de ódio e outras atividades controladas pelo Estado. Orwell chega a dizer claramente que a união dos corpos nus, a explosão do desejo sexual puro, é um ato político, de rebeldia.
Lembrar também é um ato político. Winston, o personagem principal, passa a história inteira tentando recuperar os fragmentos de uma canção esquecida. Tudo que é passado lhe interessa porque, como diz o lema do Partido, quem controla o passado, controla o presente e quem controla o presente, controla o futuro.
Todo fã de quadrinhos se recordará, inevitavelmente,  da minissérie V de Vingança, de Alan Moore. Nela, o personagem principal anda pela cidade recolhendo lembranças de um filme esquecido: Dunas de Sal.
Em 1984 o Estado pretende dominar totalmente a vida do cidadão. Cada pessoa tem em casa uma televisão que ao mesmo tempo é uma câmera. Ela jamais pode ser desligada. A todo momento a pessoa está sendo observada e ouvida. Não há qualquer tipo de privacidade.
A dominação se estende até mesmo à língua.  No livro, o inglês começa a ser substituído por algo chamado novilíngua. A idéia é reduzir ao máximo a variedade de palavras. A utilização de uma linguagem totalmente objetiva tornaria impossível qualquer pensamento subversivo.
A teoria política de Orwell também é muito interessante. Para ele, a história, mais que uma luta de classes, é a luta da classe média para alcançar o poder. Como sozinha ela não tem força para derrubar o sistema, ela faz com que os princípios da revolução pareçam abrangentes, atraindo a simpatia dos pobres.
Conseguido o poder, o povo é recolocado em seu lugar e passam a existir somente duas classes: exploradores e explorados. Com o tempo irá surgir entre esses últimos uma nova classe média que fará uma nova revolução. Daí a crença de que a revolução só pode vir do povo. Como diz Orwell: “Eles são o futuro. Nós somos os mortos”.
Mais de 50 anos depois de ser escrito, 1984 continua sendo um dos livros mais importantes do século. Para aqueles que o acham um livro pessimista, é importante conhecer um pouco da história de vida de Orwell. Uma análise detalhada demonstra que Orwell não pretendia ser profeta. Ela pretendia, isso sim, avisar sobre como se tornaria o mundo se nós abdicássemos de nossa liberdade e privacidade. O mundo será como em 1984 quando as pessoas deixarem de lutar contra o autoritarismo. Se todas as pessoas se acomodarem, é isso que acontecerá. Essa é a lição do livro.

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