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sábado, 27 de julho de 2019

Uma viagem intensa ao redor da escrita em Olhos bruxos, de Eliezer Moreira


Por Alexandra Vieira de Almeida

No novo romance de Eliezer Moreira, Olhos bruxos (Penalux, 2019), uma homenagem a Machado de Assis e ao Rio de Janeiro, encontramos a presença de dois narradores, o que torna a narrativa mais densa e contundente ao abrigar inúmeras possibilidades de leitura por seu teor simbólico e original. O narrador principal que se encontra no lugar de uma narrativa policial e detetivesca nos aponta os meandros da investigação de um furto na urna da Academia Brasileira de Letras, o pincenê de Machado de Assis. Essa narrativa central tem um teor mais realista numa linguagem mais clara e objetiva. Por outro lado, temos o narrador dos datiloescritos intitulados “Papéis avulsos” num total de 25, o título desses escritos como referência a um dos livros de Machado de Assis nos remete à junção do real e do ficcional. Numa linguagem mais ensaística, teórica e, ao mesmo tempo simbólica, temos nesses escritos relatos do ladrão do pincenê, um livreiro e bibliófilo obcecado por Machado de Assis.
Além dos 25 datiloescritos, temos 6 cartas anônimas para a Academia, assinadas com nomes das personagens de Machado de Assis e, na última carta, com o próprio nome do escritor. Esse processo de reinvenção de Machado de Assis não se apresenta como cópia servil do modelo machadiano. Ao contrário, a originalidade e a genialidade de Eliezer Moreira ultrapassam as palavras “imitação” e “simulacro”, fazendo de sua obra algo diverso e criativo que se utilizando da intertextualidade provoca um processo de antropofagia literária, ao reunir o modelo e a criação diferenciada, dando grande poder de efabulação no seu livro excepcional em todos seus contrastes e diferenças. O livro é dividido em duas partes: “Olhos bruxos” e “A invenção do destino”. Nessas duas partes, encontramos os ecos de Machado de Assis, como, por exemplos, as digressões analíticas, a conversa com o leitor e o processo de citações com relação a nomes importantes do passado. Mas isso não quer dizer subserviência ao estilo do escritor cotejado. A obra aqui em questão de Eliezer é de grande pluralismo e riqueza estilística, reunindo dois estilos de narrativa que acrescentam novos elementos ao diálogo com Machado. A sua obra é um diálogo aberto com o escritor homenageado.

Nas cartas anônimas para a Academia Brasileira de Letras, o narrador justifica o motivo pelo qual furtou os óculos de Machado. Na verdade, ele queria os olhos do escritor para poder ver como Machado e escrever como ele escreveu. E, num processo de autocrítica, vê que não conseguiu seu intento, devolvendo o pincenê do autor. Nesse meio do caminho, o narrador das cartas tem dois pincenês, o original e a réplica. Nesse sentido, encontramos aqui a ironia de Eliezer Moreira, que não precisa de cópias, mas apenas de seu processo inventivo que é magistral. Eliezer brinca com as personagens  machadianas, reunindo numa só esfera, o que é real e ficcional.  As personagens machadianas adentram na narrativa maior, assim, como na narrativa do ladrão do pincenê, os papéis avulsos e as cartas, as personagens do plano do real da primeira narrativa são incluídas, fazendo o leitor pensar nas fronteiras tênues entre o que é a realidade e o que é inventivo. O nome do jornalista que escreve a crônica no jornal que desvenda o perfil do ladrão tem o nome parecido com o próprio escritor Machado de Assis: “...um jornal do Rio publicou a crônica habitual de Joaquim de Andrade Maria, por sinal, quase um xará do autor espoliado, cujo nome completo, como se sabe, é Joaquim Maria Machado de Assis”.
Outros personagens comparecem na sua obra, como o jornalista Suetônio, que passa a investigar, por conta própria, o furto. A museóloga Manuela, que será crucial para o desvendamento do mistério. O pincenê tem um significado simbólico, que passa do concreto para o abstrato, pois o objeto adquire um significado mais amplo e que é o motivo para o furto. Ou seja, o motivo do furto não é material, mas sim estético. Outro componente essencial na obra de Eliezer é a questão da identidade do ladrão. Ele adquire várias personalidades e máscaras, escondendo sua verdadeira persona, que é descoberta no final do livro. Isso nos faz lembrar da frase de Mário de Andrade: “Eu sou trezentos...” Nesse sentido, podemos nos reportar ao processo heteronímico de Fernando Pessoa que se inventava a si mesmo a partir de outros nomes. Eliezer Moreira reinventa seu narrador-personagem ladrão que adquire múltiplas faces em nome da literatura. Ele é invadido pela força do literário, se recriando a todo instante.
A narrativa mais realista é narrada em terceira pessoa, enquanto nos papéis avulsos e nas cartas para a academia, temos uma narração em primeira pessoa. Só que, estrategicamente, Eliezer Moreira muda o foco da primeira narrativa para a primeira pessoa, revelando os vários olhares e enfoques que seu romance apresenta. Nos papéis avulsos temos reflexões sobre a literatura e a leitura. A sua leitura de mundo não é impressionista, mas bem fundamentada teoricamente, apesar do larápio negar tal afirmação. A sua experiência de leitura é vertiginosa. Encontramos metáforas na expressão de sua visão sobre o seu papel como leitor. Além disso, temos intersecções entre Quixote/Borba, Cervantes/Machado, revelando-nos suas relações a partir do processo literário. O seu estilo de escrita nos papéis avulsos e nas cartas não é ágil, há um prolongamento, uma extensão para além das páginas, pois nos faz refletir sobre elas. A narrativa principal é mais célere e nos aponta para os desvendamentos do crime. Na verdade, Eliezer Moreira, de forma grandiosa, faz um trabalho ensaístico sobre a obra de Machado de Assis, aliando a crítica à contação de uma excelente história. Além de um estudo de Machado, encontramos referências a outros escritores, como Malraux, Camus etc. Cita ainda os ladrões célebres da literatura, como Jean Genet e François Villon, unindo, assim, os ladrões reais aos imaginários. A grande proeza de Eliezer Moreira é reunir num mesmo romance um livro de investigação policial e ensaio ao mesmo tempo, mesclando o policial e o literário, a narração de uma grande história à literariedade.
A referência ao escritor Joaquim Manuel de Macedo também se apresenta aqui. Podemos nos lembrar de sua obra A luneta mágica, em que o personagem do livro vê o mundo com outros olhos a partir dos óculos que ele utiliza. Ao percorrer a cidade do Rio de Janeiro, o ladrão relata outra visão sobre as ruas pelas quais ele passa. Apesar da sujeira, do trânsito e mendicância, a partir do pincenê de Machado de Assis, vê tudo com uma visão onírica, a “mesma luz de sonho e deslumbramento”. Ele é transportado para outro tempo, nas ruas dos livros de Machado de Assis. Ao tirar as lentes, o “cenário de abjeção ressurgiu violentamente.” Suetônio observa o autor do furto, como amante do Bruxo e também amante da cidade do Rio de Janeiro. No Dicionário de símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, temos um dos significados da palavra “olho”: “O olho, órgão da percepção visual, é, de modo natural e quase universal, o símbolo da percepção intelectual”.
Portanto, nessa obra magnífica de Eliezer Moreira, encontramos dois estilos literários e distintos que se mesclam, formando, assim, uma narrativa cativante, que enreda o leitor com grande poder literário. O mistério investigativo é desvendado. As peças de seu livro se encaixam perfeitamente como num puzzle. Os “olhos bruxos” nos revelam os diferentes pontos de vista que sua obra apresenta. Por um lado, uma trama detetivesca e envolvente e, por outro, um trabalho de intensa dose literária, que analisa o mundo que nos circunda, com suas dores e prazeres. Os olhares perfeitos sobre o que é o real e o inventivo são acionados, nos levando por uma viagem intensa ao redor da escrita.

“Olhos bruxos”, romance. Autor: Eliezer Moreira. Editora Penalux, 238 págs., R$ 40,00, 2019.
Disponível em:
https://www.editorapenalux.com.br/loja/conversa-comigo
E-mail: vendas@editorapenalux.com.br

A resenhista
Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Pela Penalux, publicou os livro “Dormindo no Verbo” (2016) e “A serenidade do zero” (2017). Contato: alealmeida76@gmail.com
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Um comentário:

  1. Obrigado, Ademir Pascale e revista Conexão Literatura, por repercutirem a excelente resenha de Alexandre Vieira de ALMEIDA!

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