Uma das grandes escritoras do país na atualidade e ativista do movimento negro, para o qual dá voz com a sua literatura e atuação, a também professora mineira Conceição Evaristo, capa da nossa edição de junho é também a homenageada da 34ª Ocupação do Itaú Cultural, numa reunião de vivências e escritos, entre a obra criada por Conceição, cercada de seus símbolos de afetividade, espiritualidade e ancestralidade, o espaço expositivo ganha ares líricos, poéticos e encarna a força da negritude. Nascida em uma favela de Belo Horizonte, trabalhou como doméstica em sua cidade até seguir para o Rio de Janeiro, onde concluiu doutorado em literatura brasileira, ministrou aulas e se transformou em uma reconhecida autora de romances e contos. “Escrevivências”, como a escritora se refere ao seu trabalho – uma escrita que nasce das vivências, vivendo para narrar, narrando o que vive. São dela, obras reconhecidas como Ponciá Vicêncio, seu primeiro romance publicado, em 2003, Becos da Memória, de 2006, Poemas da Recordação e Outros Movimentos, lançado dois anos depois, e os livros de contos Insubmissas Lágrimas de Mulheres, de 2011, Olhos D´Água, de 2014, e Histórias de Leves Enganos e Parecenças, de 2016.
Confira entrevista exclusiva que Conceição Evaristo cedeu para a nossa revista:
Conexão Literatura: Quando escreve a senhora pensa num público-alvo específico?
Conceição Evaristo: O meu grande desejo é que a minha escrita pudesse chegar até às pessoas que me inspiram. E isto só seria possível, se a ferramenta da leitura pertencesse a todas as classes sociais, se os livros e outros bens culturais estivessem disponíveis para todas as pessoas. Por exemplo, assistir um filme, uma peça teatral, visitar uma exposição pode despertar o desejo para a leitura e vice-versa. Registro que o primeiro espaço de recepção de minha escrita foi dentro do Movimento Social Negro e todas as pessoas, não só negras, e que são atentas e sensíveis para os modos de relações raciais na sociedade brasileira. Há um público ávido por textos que se distanciem o mais possível, da forma estereotipada de composição das personagens negras na literatura brasileira. Foi esse público, por meio de nossos eventos que primeiramente conheceram meus textos, cuja primeira publicação se dá em Cadernos Negros, em 1990. Pensando primeiramente nesse público que busca textos, que trazem identificações afirmativas, positivas, mesmo que atravessadas pela dor, de nossa condição de descendentes de povos africanos, que a minha escrita se dirigiu primeiro. Entretanto esse público leitor foi expandindo, chegando às salas de aula, chegando aos cursos de Letras, de Educação, de História e outros como pesquisas pra TCC e pós-graduação, aumentando e diversificando significativamente o publico leitor. Hoje eu poderia dizer que escrevo para quem quiser me ler, mas com particular atenção para quem sofre por um motivo ou por outro, qualquer forma de exclusão, marcado pelo fato de negro, mulher, pobre, ter uma opção sexual diferenciada do que a sociedade espera.... Cuido para que essas pessoas, muitas vezes agredidas em suas identidades, percebam personagens tão humanas quanto elas.
Conexão Literatura: Poderia comentar sobre a "escrevivência"?
Conceição Evaristo: Tenho dito que tudo que escrevo, crítica, ensaio, escrita literária, toda minha criação surge marcada pela minha condição de mulher negra na sociedade brasileira. As escolhas temáticas, o vocabulário, as personagens, os modos de construção das mesmas, o enredo, nada nasce imune ao que sou, às minhas experiências, à minha vivência. Escrevo uma vivência, que pode ser ou não, a real, a vivida por mim, mas que pode se con(fundir) com a minha. Nesse sentido, nada que está narrado em Becos da Memória é verdade e nada que está escrito em Becos é mentira. São memórias ficcionalizadas. Em Ponciá Vicêncio, trago narrativas sobre a escravidão dos africanos, mulheres e homens, contadas por minha família, e que ouvi na minha infância.
O conto “Di Lixão”, fui inspirada ao ouvir um relato de briga de um menininho, vendedor de amendoim, em um bar, na Cinelândia, Rio de Janeiro. Digo ainda, quando crio uma personagem, como Biliza ou Ditinha, ambas domésticas, repetindo uma afirmativa da escritora Miriam Alves, sobre o lugar em que nos colocamos para criar essas personagens. Miriam enfatiza o que eu também explicito. Para criar uma personagem que encarna uma doméstica, não precisamos de laboratório ou investigação para a criação da mesma. Enquanto um processo criativo pode se dá pelo olhar de “uma patroa ou patrão”, que na porta do quarto da empregada olha para a personagem lá dentro, para a construção da mesma, o processo criativo que experimento, por injunções de uma história particular e coletiva se torna outro. Trago outra vivência, a minha fala nasce de dentro do quarto da empregada. Posso ser a própria empregada falando, escrevendo, concebendo uma personagem de si própria. Escre (vendo) se. Escrevivendo-se. Escrita e vivência. Vivência como sumo da própria escrita. Escrevivência.
Conexão Literatura: Podemos dizer que suas obras tornaram-se ferramentas contra a discriminação racial e injustiças sociais?
Conceição Evaristo: Sim, creio que sim. Assim como há discursos literários fomentadores de posturas racistas, machistas, homofóbicas e outras práticas cruéis de uns sujeitos sobre outros, há uma literatura que pode concorrer para relações mais humanas entre as pessoas
Conexão Literatura: Em relação as suas obras, está mais fácil publicar hoje?
Conceição Evaristo: Sim. A antologia Olhos d’água,(2014) obra que me deu o 3º lugar, na categoria contos, do Prêmio Jabuti, assim como a reedição dos romances Ponciá Vicêncio e Becos da Memória ( 2017) foram publicados pela Editora Pallas, RJ.
Também no Rio de Janeiro, a Editora Malê, cujo projeto central é o de editar escritores e escritoras negro/as, publicou três livros de minha autoria. A antologia de contos Histórias de leves enganos e parecenças, (2016) e a reedição da antologia Poemas da recordação e outros movimentos, (2017) e do livro de contos Insubmissas lágrimas de mulheres (2017), obras que estavam esgotadas.
Conexão Literatura: Poderia comentar sobre o projeto Cartas Negras e sobre a mostra no Itaú Cultural?
Conceição Evaristo: “Cartas Negras” foi um projeto que nasceu nos anos 90, precisamente em 91, por ocasião do lançamento de Cadernos Negros, em casa de Miriam Alves. Estávamos, Miriam, Esmeralda, Sonia, Lia e eu celebrando a nossa participação em Cadernos, quando surgiu a ideia de escrevermos cartas entre nós. Cada qual ao retornar para casa para enfrentar o nosso cotidiano, faríamos troca de cartas, selando a nossa Confraria de Mulheres que se solidificava naquele momento. Fomos tão fecundas naquele momento, que sonhamos publicação e até o prefácio. Lembro-me que um dos nomes sugeridos para o prefácio, dentre outros, foi o de Lélia Gonzales. Trocamos as primeiras cartas, que ficaram quase que perdidas no tempo. De vez em quando, Miriam e eu, em conversa, relembrávamos a Nossa Confraria e desejávamos as cartas, nunca esquecidas, mas não mais materializadas em nossas vidas. A mostra chegou e nos permitiu a retomada desse nosso desejo. Como a Ocupação prevê uma publicação, o projeto pode ser retomado. Foram convidadas novas escritoras que se juntaram às “fundantes” da Confraria das Cartas Negras, em nossas letras, vozes-mulheres-negras, em que nos oferecemos como dádivas mútuas, nossas dores, nossas alegrias, tudo que compõe a nossa escrevivência. E mais do que isso, a nosso desejo, a nossa promessa de continuarmos...
Quanto à “Ocupação Conceição Evaristo”, esse acontecimento tem significado muito importante na e para a recepção de nossa escrita. Creio que ao visibilizar a autoria de uma mulher negra, por extensão, outras escritoras são visibilizadas também. Ao colocar uma mulher negra no centro da cena literária, da maneira como o trabalho foi concebido, em sua totalidade, ajuda quebrar também com o imaginário brasileiro, que insiste ainda em colocar as mulheres negras no lugar da subalternidade.
Conexão Literatura: Como os leitores interessados poderão adquirir suas obras? Ainda existe a possibilidade de adquiri-las autografadas diretamente com você?
Conceição Evaristo: Os livros estão sendo disponibilizados para aquisição do público nos momentos em que eu estou presente e tenho e posso autografar para quem desejar
Perguntas rápidas:
Um livro: O olho mais azul de Toni Morrison
Um (a) autor (a): Geni Guimarães
Um ator ou atriz: Camila Pitanga
Um filme: Filhas do Vento
Um dia especial: O dia em que visitei a Organização das Mulheres Moçambicanas em Moçambique/ 2010
Conexão Literatura: Deseja encerrar com mais algum comentário?
Conceição Evaristo: Precisamos mais do que celebrar as histórias de exceção, mais do que celebrar as vitórias pessoais, precisamos refletir sobre a crueldade da regra. Quais são limites impostos pelas regras que interditam a chegada de muitos, permitindo que só uns poucos consigam os resultados finais.
Confira entrevista exclusiva que Conceição Evaristo cedeu para a nossa revista:
Conexão Literatura: Quando escreve a senhora pensa num público-alvo específico?
Conceição Evaristo: O meu grande desejo é que a minha escrita pudesse chegar até às pessoas que me inspiram. E isto só seria possível, se a ferramenta da leitura pertencesse a todas as classes sociais, se os livros e outros bens culturais estivessem disponíveis para todas as pessoas. Por exemplo, assistir um filme, uma peça teatral, visitar uma exposição pode despertar o desejo para a leitura e vice-versa. Registro que o primeiro espaço de recepção de minha escrita foi dentro do Movimento Social Negro e todas as pessoas, não só negras, e que são atentas e sensíveis para os modos de relações raciais na sociedade brasileira. Há um público ávido por textos que se distanciem o mais possível, da forma estereotipada de composição das personagens negras na literatura brasileira. Foi esse público, por meio de nossos eventos que primeiramente conheceram meus textos, cuja primeira publicação se dá em Cadernos Negros, em 1990. Pensando primeiramente nesse público que busca textos, que trazem identificações afirmativas, positivas, mesmo que atravessadas pela dor, de nossa condição de descendentes de povos africanos, que a minha escrita se dirigiu primeiro. Entretanto esse público leitor foi expandindo, chegando às salas de aula, chegando aos cursos de Letras, de Educação, de História e outros como pesquisas pra TCC e pós-graduação, aumentando e diversificando significativamente o publico leitor. Hoje eu poderia dizer que escrevo para quem quiser me ler, mas com particular atenção para quem sofre por um motivo ou por outro, qualquer forma de exclusão, marcado pelo fato de negro, mulher, pobre, ter uma opção sexual diferenciada do que a sociedade espera.... Cuido para que essas pessoas, muitas vezes agredidas em suas identidades, percebam personagens tão humanas quanto elas.
Conexão Literatura: Poderia comentar sobre a "escrevivência"?
Conceição Evaristo: Tenho dito que tudo que escrevo, crítica, ensaio, escrita literária, toda minha criação surge marcada pela minha condição de mulher negra na sociedade brasileira. As escolhas temáticas, o vocabulário, as personagens, os modos de construção das mesmas, o enredo, nada nasce imune ao que sou, às minhas experiências, à minha vivência. Escrevo uma vivência, que pode ser ou não, a real, a vivida por mim, mas que pode se con(fundir) com a minha. Nesse sentido, nada que está narrado em Becos da Memória é verdade e nada que está escrito em Becos é mentira. São memórias ficcionalizadas. Em Ponciá Vicêncio, trago narrativas sobre a escravidão dos africanos, mulheres e homens, contadas por minha família, e que ouvi na minha infância.
O conto “Di Lixão”, fui inspirada ao ouvir um relato de briga de um menininho, vendedor de amendoim, em um bar, na Cinelândia, Rio de Janeiro. Digo ainda, quando crio uma personagem, como Biliza ou Ditinha, ambas domésticas, repetindo uma afirmativa da escritora Miriam Alves, sobre o lugar em que nos colocamos para criar essas personagens. Miriam enfatiza o que eu também explicito. Para criar uma personagem que encarna uma doméstica, não precisamos de laboratório ou investigação para a criação da mesma. Enquanto um processo criativo pode se dá pelo olhar de “uma patroa ou patrão”, que na porta do quarto da empregada olha para a personagem lá dentro, para a construção da mesma, o processo criativo que experimento, por injunções de uma história particular e coletiva se torna outro. Trago outra vivência, a minha fala nasce de dentro do quarto da empregada. Posso ser a própria empregada falando, escrevendo, concebendo uma personagem de si própria. Escre (vendo) se. Escrevivendo-se. Escrita e vivência. Vivência como sumo da própria escrita. Escrevivência.
Conexão Literatura: Podemos dizer que suas obras tornaram-se ferramentas contra a discriminação racial e injustiças sociais?
Conceição Evaristo: Sim, creio que sim. Assim como há discursos literários fomentadores de posturas racistas, machistas, homofóbicas e outras práticas cruéis de uns sujeitos sobre outros, há uma literatura que pode concorrer para relações mais humanas entre as pessoas
Conexão Literatura: Em relação as suas obras, está mais fácil publicar hoje?
Conceição Evaristo: Sim. A antologia Olhos d’água,(2014) obra que me deu o 3º lugar, na categoria contos, do Prêmio Jabuti, assim como a reedição dos romances Ponciá Vicêncio e Becos da Memória ( 2017) foram publicados pela Editora Pallas, RJ.
Também no Rio de Janeiro, a Editora Malê, cujo projeto central é o de editar escritores e escritoras negro/as, publicou três livros de minha autoria. A antologia de contos Histórias de leves enganos e parecenças, (2016) e a reedição da antologia Poemas da recordação e outros movimentos, (2017) e do livro de contos Insubmissas lágrimas de mulheres (2017), obras que estavam esgotadas.
Conexão Literatura: Poderia comentar sobre o projeto Cartas Negras e sobre a mostra no Itaú Cultural?
Conceição Evaristo: “Cartas Negras” foi um projeto que nasceu nos anos 90, precisamente em 91, por ocasião do lançamento de Cadernos Negros, em casa de Miriam Alves. Estávamos, Miriam, Esmeralda, Sonia, Lia e eu celebrando a nossa participação em Cadernos, quando surgiu a ideia de escrevermos cartas entre nós. Cada qual ao retornar para casa para enfrentar o nosso cotidiano, faríamos troca de cartas, selando a nossa Confraria de Mulheres que se solidificava naquele momento. Fomos tão fecundas naquele momento, que sonhamos publicação e até o prefácio. Lembro-me que um dos nomes sugeridos para o prefácio, dentre outros, foi o de Lélia Gonzales. Trocamos as primeiras cartas, que ficaram quase que perdidas no tempo. De vez em quando, Miriam e eu, em conversa, relembrávamos a Nossa Confraria e desejávamos as cartas, nunca esquecidas, mas não mais materializadas em nossas vidas. A mostra chegou e nos permitiu a retomada desse nosso desejo. Como a Ocupação prevê uma publicação, o projeto pode ser retomado. Foram convidadas novas escritoras que se juntaram às “fundantes” da Confraria das Cartas Negras, em nossas letras, vozes-mulheres-negras, em que nos oferecemos como dádivas mútuas, nossas dores, nossas alegrias, tudo que compõe a nossa escrevivência. E mais do que isso, a nosso desejo, a nossa promessa de continuarmos...
Quanto à “Ocupação Conceição Evaristo”, esse acontecimento tem significado muito importante na e para a recepção de nossa escrita. Creio que ao visibilizar a autoria de uma mulher negra, por extensão, outras escritoras são visibilizadas também. Ao colocar uma mulher negra no centro da cena literária, da maneira como o trabalho foi concebido, em sua totalidade, ajuda quebrar também com o imaginário brasileiro, que insiste ainda em colocar as mulheres negras no lugar da subalternidade.
Conexão Literatura: Como os leitores interessados poderão adquirir suas obras? Ainda existe a possibilidade de adquiri-las autografadas diretamente com você?
Conceição Evaristo: Os livros estão sendo disponibilizados para aquisição do público nos momentos em que eu estou presente e tenho e posso autografar para quem desejar
Perguntas rápidas:
Um livro: O olho mais azul de Toni Morrison
Um (a) autor (a): Geni Guimarães
Um ator ou atriz: Camila Pitanga
Um filme: Filhas do Vento
Um dia especial: O dia em que visitei a Organização das Mulheres Moçambicanas em Moçambique/ 2010
Conexão Literatura: Deseja encerrar com mais algum comentário?
Conceição Evaristo: Precisamos mais do que celebrar as histórias de exceção, mais do que celebrar as vitórias pessoais, precisamos refletir sobre a crueldade da regra. Quais são limites impostos pelas regras que interditam a chegada de muitos, permitindo que só uns poucos consigam os resultados finais.
Para baixar gratuitamente a edição de junho da Revista Conexão Literatura, com Conceição Evaristo em destaque: clique aqui.
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