Fahrenheit 451, de Ray Bradbury talvez,
segundo alguns críticos, encerra o período das distopias clássicas, clube que
agrega dentre outras obras, os clássicos 1984,
de George Orwell, Admirável Mundo Novo,
de Aldous Huxley e Nós, de Yevgegny
Zamyatin. Se Huxley envereda-se pelos limites da utopia enquanto o
totalitarismo político é o elemento central para Zamyatin e Orwell, Ray
Bradbury, contudo, irá abordar justamente a morte da arte e da literatura pelas
“mãos totalitárias” em seu romance que falará da queima de livros. Exemplos de
grandes queimas de livros “na vida real” não faltarão ao autor, e tanto em
regimes totalitaristas como os de Stálin e de Hitler ou em democracias, não
raro a censura e a “queima” de livros tem sido uma prática bastante usada na
história humana. E como o próprio Ray Bradbury disse “existe mais de uma
maneira de queimar um livro. E o mundo está cheio de pessoas com fósforos
acesos”. É nesse contexto que “nasce” o icônico personagem de Fahrenheit 451, Guy Montag, ostentando
inicialmente “na cabeça impassível, o capacete simbólico com o número 451 e,
nos olhos, a chama laranja do que viria a seguir...” Um bombeiro cuja função
era justamente queimar livros, ofício de um Montag, que aos pouco começará a
perguntar-se se não há algo de importante
de fato nos livros. Desde então tem sido ele sempre lembrado quando nos
deparamos com ataques aos livros [nesse caso compreendendo-os aqui como obra de
arte], e dos longínquos 1953, quando foi publicado, aos dias de hoje, infelizmente
não faltam sugestões de ocupação para outros Guy’s Montag’s [ e falo aqui do Montag ainda não tocado pelos
livros].
Mas
antes de falarmos das tantas sugestões e formas de se recriar “o grupo de
bombeiros” de Fahrenheit 451, observemos
antes o olhar de Bradbury acerca da temática. No romance o autor usará a voz do
Capitão Beatty para apresentar ideias que o próprio autor compartilha como
veremos numa coda escrita para o livro. É num diálogo entre o capitão e o já
“encucado” Guy Montag que o superior aponta para o início que levara a própria
criação dos bombeiros de Fahrenheit 451:
“agora tomemos as minorias de nossa civilização, certo? Quanto maior a
população, mais minorias. Não pise nos amigos dos cães, nos amigos dos gatos,
dos médicos, advogados, patrões etc.” diz o capitão exemplificando como uma
obra pode contrariar interesses ou ideologias. Seguindo no diálogo o Capitão
lembra a Montag que “quanto maior o seu mercado, menos você controla a
controvérsia! Todas as menores das menores minorias querem ver seus próprios
umbigos, bem limpos”. Assim como a posição de Beatty, Bradbury apresenta sua
preocupação com o que chama “de minoria” quem segundo ele, tais minorias “acha
que tem a vontade, o direito e o dever de esparramar a querosene e acender o
pavio”. Bradbury do mesmo modo aponta
seu dedo para “cada editor estúpido que se considera fonte de toda literatura,
lustra sua guilhotina e mira a nuca de qualquer autor que ouse falar mais alto
que um sussurro”. São, todavia, argumentações um tanto fortes. Bradbury escreve
a coda justamente para falar sobre a descoberta de partes de Fahrenheit 451 alteradas ou censuradas
por editores, certamente algo estranho justamente num livro sobre queima de
livros. Do mesmo modo o falar verborrágico de Beatty não deixa de carregar
pensamentos conservadores, e ambos [autor e personagem] talvez cometam apenas o
erro de focar tão somente nas minorias de maneira mais enfática como demonstra
ao dizer que “o corpo de bombeiros” foi uma construção, não de governos, mas da
sociedade. “Não houve nenhum decreto, nenhuma declaração, nenhuma censura como
ponto de partida. Não! A tecnologia, a exploração das massas e a pressão das
minorias realizaram a façanha”. Vejo, portanto, como grande pecado de Fahrenheit 451 e do próprio Bradbury, ao
tentar alertar “para o perigo das minorias” não o fazê-lo também com “a
maioria” que é tão ou mais incendiária que qualquer minoria. Aliás, não
poderíamos deixar de observar que a pressão do status quo e das maiorias muitas vezes sequer precisa de fósforo
porque é capaz de eliminar o livro ainda quando semente. Mas feita a lembrança
de tais equívocos, o que nos importa é que as preocupações de Bradbury e seu
romance sobre queima de livros são pertinentes e relevantes, e para além do que
o próprio autor vislumbrou sobre a censura aos livros, o que nos importa que
vindos seja de minorias, seja de alguma maioria, “os fósforos acesos” são
inadmissíveis, ainda mais se ao final concordarmos com Antonio Candido de que é
a literatura um direito inalienável a todos nós, seres humanos.
E por que retomarmos Guy Montag nesse momento?
Porque talvez estejamos vivendo dias distópicos em que os universos imaginados
por Orwell, Bradbury e outros infelizmente são cada dia mais reais. Vejamos,
por exemplo, a informação dada pelo site do Jornal Folha de São Paulo dandoconta de um novo tipo de profissionais do mercado editorial: os leitores sensíveis. Segundo a matéria
tais profissionais já são usados de maneira mais efetiva lá fora, e embora de
modo incipiente, já começam a ser utilizados aqui no Brasil. Conforme a
reportagem tais leitores atuariam ainda nos originais detectando justamente a
existência de que as obras propostas a editores possam conter elementos que
venham ferir possíveis minorias. Sinceramente, creio que não haja maior
violência contra as minorias que justamente a existência de tais profissionais.
Como podemos lutar para que estas mesmas minorias, enfim, cheguem às livrarias
ocupando espaços até então bloqueados por ideologias conservadoras, se se
passar a utilizar da mesma arma da censura. Sejamos sensatos, claro, há uma
série de coisas que são crimes e para isso há a legislação, entretanto, para
quem de fato defenda a literatura, mesmo em suas imperfeições, esta é uma
questão gigantescamente alarmante, seja de onde for que venham “os fósforos”.
Ainda que da mesma forma condenável, minimamente tento compreender uma situação
dessas numa questão simplesmente mercadológica, porém se utilizados os leitores
sensíveis também para o que se propõe literário isso não é apenas um fósforo,
mas um departamento inteiro do “corpo de bombeiros”. Historicamente fomos
construindo-nos enquanto humanos por meio da dialética, e medidas como esta revelada
pela reportagem da Folha só poderão levar a um empobrecimento cada vez maior da
literatura, que já tem de enfrentar tantos outros desafios. Além disso, com
erros e com acertos a voz de Bradbury deve ser ouvida, e como ele mesmo diz
“encaremos, portanto – a digressão é a alma do intelecto. Tirem-se os apartes
filosóficos de Dante, Milton ou o fantasma do pai de Hamlet e o que fica são
ossos esquálidos”. Por fim, não creio
que superaremos as máculas de tantos “ismos” simplesmente apagando-os dos
livros, mas sim sendo capazes de dar vozes a outros pontos de vistas permitindo
que as vozes marginalizadas até então passem a ocupar o espaço literário.
É um serviço de apoio, funciona como o revisor técnico. O autor decide se adota ou não.
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